7 de fev. de 2012

Não é piada


Por duas vezes, recebi um e-mail que parece uma reação “bem humorada” (mas, para mim, extremamente problemática) às ações afirmativas voltadas à promoção da comunidade negra brasileira. São 17 “artigos” falando em cotas para “alemães”, penalidades a supostas ofensas raciais, dias comemorativos etc. Quando recebi, fiz um comentário e remeti-o como “resposta” a amigos. No segundo caso, expliquei à pessoa (uma professora) que estava reproduzindo o mesmo comentário, conforme segue abaixo.


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Olá, profa.

No mês passado um outro amigo também remeteu, através de uma lista de conversas via e-mail que eu participo, esse “projeto de lei”. Obviamente, se trata de um chiste, que pretende, com ironia, criticar as ações afirmativas vinculadas à promoção da população negra brasileira – mas que também envolve a população indígena, beneficiária nas reservas de vaga, como ocorre no ProUni, entre outros programas federais bastante exitosos.

Na ocasião que recebi o texto, enviei uma “resposta”, que vou colar mais abaixo. É um rápido e informal comentário feito para/entre amigos da supracitada lista, na maioria “leigos” no debate. Está longe de esgotar a questão, mas pode ser uma abertura para uma argumentação mais consistente sobre a procedência ou não do uso de cotas no Brasil.

Agradeço a tua atenção. Tudo de bom e fico à disposição.


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Hehe!!

Como disse o nosso camarada, como uma piada provocativa, fica bem. Mas vai até aí!

De fato, chamar alguém de "alemão porco" é racismo e se deve enquadrar o cara na hora, sem hesitação. Chamar o cara de "negro" como referência de origem étnico-racial (racial só existe em sentido ideológico, não biológico) não é ofensa alguma. Chamar o cara de "negro sujo" já é ofensivo e é passível de enquadrar como racismo ou, no mínimo, injúria. Há um mal entendido geral de que chamar alguém de negro é ofensivo, quando os próprios militantes se intitulam de “movimento negro”. Os equívocos já começam por aí e depois só pioram!!!

No item 03 usa-se a palavra "denegrir", ou seja, “torná-lo negro”, ou seja, rebaixá-lo, ofendê-lo... Sem querer, estão aí palavras que demonstram o nosso racismo institucionalizado, internalizado - como usávamos tranquilamente na infância a palavra "negrisse" para dizer que era algo exagerado e feio...

O racismo contra negros tem uma história longa, triste, cruel e massiva. Negros foram animalizados para justificar a escravização e viveram no Brasil, por quase 400 anos, abaixo do pau e do mais abjeto rebaixamento, além de uma exploração absurda do trabalho e outros sujeições indescritíveis, brutais. O passado não se apaga e, no caso, é uma maldição que ainda não expirou. Basta olhar as os estudos e estatísticas e ver os patamares socioeconômicos onde está a esmagadora maioria da população negra no Brasil – a maior nação negra após a Nigéria. Cito só dois estudiosos ainda referencias no assunto: Fernando Henrique Cardoso e Florestan Fernandes [foto acima]. Produziram estudos profundos e reflexões que todos deveríamos ter ao menos uma noção – para embasarmos nossas posições com mais dados e menos preconceitos e chavões reacionários.

As pessoas de “origem alemã” – uma designação imprecisa para uma população tão vasta e diversa (e considerando que a Alemanha sequer existia como país até 1870), que emigrou do norte da Europa aqui para a região, forçadas pela miséria crescente e tremendas injustiças sociais lá existentes, e, boa parcela, dentro de programas subsidiados com recursos do governo brasileiro (aliás, gerados pelo trabalho escravo), esses indivíduos e famílias recebiam, em suas primeiras levas aqui para Santa Cruz, em meados do século XIX, cerca de 72 hectares, além de ferramentas, utensílios, provisões de alimentos; aos negros após a abolição, o que lhes foi oferecido depois de gerações e gerações negras trabalhando feito bois de canga ou coisa pior?? Daí os efeitos sociais e culturais perversos, que não desaparecem facilmente. E então são necessárias ações que surtam efeito já, imediatamente; que o neguinho não precise esperar mais 100 anos para, por exemplo, se formar médico, engenheiro, professor universitários; políticas afirmativas como as cotas (alguns chama de “discriminação positiva”) é isso: "burlar" (ou vencer) as consequências funestas do passado de modo mais rápido, sem mais delongas. (Depois de equalizada e construída uma igualdade de fato, extingue-se a ação.)

E não se pense que o pobre branco é igual ao pobre negro; o negro pobre tem um "plus" de adversidade para enfrentar desde o nascimento – justamente o racismo. Para quem duvidar, posso remeter um estudo local, aqui de Santa Cruz do Sul, feito pelo historiador Alan Seitenfus, “Mobilidade social e processo de (re)democratização do Brasil”, traçando comparativos entre a mobilidade socioeconômica de brancos e negros da mesma classe – e aí se verá quanta diferença faz a cor da pele e o cabelo pixaim...

Enfim, não se criou políticas afirmativas, caso das cotas, baseando-se numa vontade de “ser bonzinho com os negros”. No frigir dos ovos, toda a população brasileira se beneficia com a equalização étnico-racial, diminuindo-se disparidades e conflitos advindos dos fossos (fossas?) sociais. Não dá mais para aceitar que, como acontece em quase todas as universidade brasileiras, onde, em seu quadro de professores, um número tão diminuto de docentes seja de pessoas negras, estando longe de refletir o percentual de afrodescendentes existentes em nível local e nacional. Será que isso acontece por “pura” incapacidade, falta de vontade da “negrada”? Eu penso que não. É o racismo agindo pelos seus sutis, mas poderosos filtros.

No Brasil temos um “apartheid” mais eficiente do que o havido na África do Sul e EUA – porque "cordial" e "não dito". E isso não se rompe só com palavreados, grandiloquências ditas do alto de nossa brancura e seus privilégios (naturalizados), de que “TODOS SOMOS IGUAIS”. É preciso considerar os fatos, os números e a história, e agir aqui e agora para diminuir injustiças e sofrimentos.

Abraços!

3 de fev. de 2012

Tradicional desde agora


A expressão reputada ao historiador Hobsbaw, “a invenção das tradições” (na verdade, título de uma obra sua em co-autoria), chama atenção pelo seu aparente paradoxo e por sua hodierna procedência quando analisamos vários fenômenos socioculturais (e não só questões ligadas a macropolítica), repercutindo nas identidades de pessoas e comunidades. Alguns desses fenômenos são bem prosaicos. Já mencionei outras vezes, mas volto ao campo da “gastronomia típica” a partir, também, de uma leitura de jornal, no caso, um reportagem no caderno Gastronomia de Zero Hora, edição de 20 de janeiro de 2012.

Com o título “Uma cantina italiana”, trata da “Culinária caseira e biscoitos [que] resgatam [a] gastronomia dos imigrantes italianos” em uma localidade interiorana do município de Severino Almeida, no Rio Grande do Sul. No “farto cardápio da Cantina”, frequentada por muitos turistas, vários com ítalo-descendência, há “outra especialidade típica da região, os biscoitos italianos”.

As guloseimas, que se poderiam acreditar fruto de receitas tradicionalísssimas, próprias da referida comunidade ítalo-brasileira desde tempos quase imemoriais, na verdade são “invenções” bastante recentes. Conforme nos conta a reportagem, “Três meses de pesquisa na Itália” deram subsídios a confeiteira da família proprietária da Cantina criar “uma linha de biscoitos [...] com 10 sabores que remetem a regiões italianas” (do país Itália de hoje, frise-se). A reportagem menciona o sucesso que as iguarias têm obtido, ultrapassando as fronteiras do pequeno burgo gaúcho.

Ou seja, há poucos anos atrás, em uma viagem a Itália, recolheram-se ideias e, de volta ao Brasil, criou-se uma linha de biscoitos que não havia, que nunca foram feitos e degustados nas colônias de ítalo-descendentes ao longo das suas histórias iniciadas no século XIX no Estado (RS). Mas que agora, por meio da experiência no estrangeiro e empenho da confeiteira da Cantina em Severino Almeida, se tornaram “especialidades típicas”... Mas "típicas" não no sentido de “antigas”, e , sim, de característico de um processo de “invenção da tradição”, sendo algo que potencializa as vendas dos confeitos, que se tornam elementos distintivos, portadores de um lustro histórico e identidade étnica valorizada. Poderíamos dizer que é um embuste, mas que funciona...