25 de abr. de 2012

A fé e o caminhão


O jornal santa-cruzense Gazeta do Sul de 18/04/12, na sua página 12, publicou uma reportagem sobre as famosas capelinhas de Schoenstatt – uma delas, inclusive, circula lá por casa uma vez por mês mais ou menos.

Tudo começou com um comerciante, João Pozzobon, “um homem de muita fé”, que recebeu uma capela de irmãs da congregação Schoenstatt durante um retiro espiritual em Santa Maria no ano de 1950.

“Ele ganhou o presente [das irmãs Schoenstatt] como uma missão e, durante 35 anos, noite após noite, no inverno ou verão, levou a imagem de casa em casa, aos hospitais, escolas, presídios e outros.”

Chegou a criar calo no ombro, pois a capela original era pesada, 8 quilos, obrigando-o a usar tal apoio. Andava a pé por trechos de até 15km.

Mas uma coisa não deu bem certo...

“João morreu atropelado em 1985, quando se dirigia para a missa com a imagem”, diz a reportagem.

Putz!

Fiquei imaginando o seu Pozzebon, com a santa em baixo do braço ou no ombro, atravessando a rua, a igreja logo adiante... Num descuido, não vê o caminhão que vem em alta velocidade e BAMMM!!! Rolam no chão o devoto e a capela da santa espatifada...

Chega a ser tragicômico. Como isso pode acontecer? Onde estava as bênçãos e proteção do amuleto católico, tchê?! Para que serviram tamanha devoção do seu Pozzobon? A essa altura, era um devoto já idoso e.. não mereceria uma morte menos estúpida, brutal? Mais tranquila, durante o sono, sendo conduzindo pela mão da santa e anjos? Qual é a lógica disso? Como explicar, senão usando de subterfúgios do tipo “mas sua morte poderia ser ainda pior”... Mas pior que ser estupidamente atropelado?!

Eu até queria colar a reportagem aqui pra vocês, ou colocar o link, mas, não sei porquê, não foi publicada na versão eletrônica do jornal... Será que é porque a coisa ficou estranha? Revelar algo que contradiz a suposta proteção obtida pela fé na santa? De fato, ter mencionado o acontecido com o seu João desabona muito o amuleto!

A fé exige esforços de altíssima irracionalidade. Nega-se, assim, o que, acho eu, é a marca principal do animal humano, que lhe faz transcender – ao menos um pouco – a sua condição biológica, de ser da natureza, ou seja, nega-se o pensar racional, baseado em evidências sistemáticas, em comprovações fidedignas. Entretanto, vigora o obscurantismo, apesar de todas as evidências que minam as inúmeras crendices, lendas e explicações sem pé nem cabeça (nonsense!), disparates, superstições.

Aposto que a reportagem, lida por um devoto, mesmo que com a atenção, no máximo vai dar uma arranhada na “fé”; a seguir, a pessoa – por conta de alguma “necessidade” (ou seria embotamento emocional ou do pensamento?) – vai continuar indo convictamente na procissão, inclusive raspando os joelhos no asfalto...

A capela foi reformada após o acidente. E seu Pozzebon, ao invés de ser o exemplo das falhas e contradições da fé, numa “ultranegação” do acontecido – sua morte trágica com a santa na mão sem lhe avisar do descuido ao atravessar uma rua –, deverá ser canonizado. Há todo um esforço para que “milagres concedidos por João” seja comprovados... (Milagre são tantas pessoas persistirem cultuando a santa e seu devoto!)

Todo caso, recomendo: Ao atravessar a rua, com ou sem santa, muito cuidado com o caminhão...


* O Papa João Paulo II (se não me engano) ter levado um tiro é também uma baita ironia, já que é o representante-mor do Deus dos Católicos. Ele, o Papa, creditou a sua salvação na época à "mão da Nossa Senhora" (não sei qual das milhares de denominações), que teria desviado a bala; caso contrário, seria fulminante. Como mencionou o biólogo Dawkins, o "sumo pontífice" não falou das mãos do cirurgiões, que durante seis horas o operaram... A invés de creditar (ao menos em boa parte) às habilidades dos profissionais médicos e a ciência e tecnologia a sua recuperação, creditou em primeiro lugar a uma aparição lendária e seu poder miraculoso incomprovado... Bem, a crítica que eu estou tentando fazer é direcionada aos adeptos de relíquias de proteção e de pedidos de bênçãos "clássicas" do catolicismo, mas pode servir a inúmeras outras superstições. Óbvio que não estou querendo ofender pessoalmente ninguém, mas seis que isso é impossível quando se trata de religião(e futebol...); quero levantar uma contradição flagrante, quando um devoto ferrenho não recebe a proteção do seu amuleto. No caso do seu João Pozzobon, como eu mencionei, se o acontecido não fosse realmente trágico, poderia ser hilário ("humor negro"); mas mesmo com todos esses componentes de suprema ironia, quando um grande fiel acaba por não ter a proteção do seu objeto de culto (que portava no momento, inclusive), mesmo assim parece que a fé, depois de umas balançadas na cabeça das pessoas, volta em sua firmeza irracional...

** Há quem diga, como sábio Roxão K., que o humano, de um modo geral, precisa acreditar em histórias que lhe tirem um pouco o medo da morte, que falem da continuidade da vida e de sua proteção pessoal num mundo extremamente hostil. Acho que devemos é nos esforçar para vivermos todos bem, aqui e agora, ajudando a criar um mundo acolhedor, de fraternidade, para além (ou aquém!) de crenças em anjos e demônios...

*** O citado Dawkins (Richard) é uma ferrenho combatente do obscurantismo religioso, inclusive por parte de cientistas "crentes". Ele não poupa nem agnósticos como eu. Acho os seus trabalhos muuuuuito importantes na atualidade, quando, na segunda década do século XXI, continuam a proliferar concepções das mais estapafúrdias, milenaristas, arcaicas, emburrecedoras, em choque com o conhecimento e tecnologia que já geramos. É o caso já comentado do Criacionismo - proposto em escolas norte-americanas para substituir (ou voltar a vigorar) no lugar da biologia evolucionista iniciada por Darwin e outros; a Bíblia ainda seria a descrição correta (e literal) para o surgimento da vida...

19 de abr. de 2012

O rapaz não fazia a barba, nem cortava o cabelo, passeando à noite solitário... pois foi preso e morto em 1976 em Buenos Aires


Em 18 de março de 1976 o pianista brasileiro Francisco Tenório, em turnê junto com Vinícius e Toquinho em Buenos Aires, “caminhava solitário quando foi jogado para dentro de uma Ford Falcon na esquina da Av. Corriente com a Rua Rodrígues Peña”, centro da capital argentina, conforme reportagem saída em ZH de sexta-feira passada, 13 de abril. Nunca mais foi localizado. A família até já recebeu a indenização do governo argentino pelo desaparecimento do músico, mas nada de seu corpo, perdido em algum cemitério clandestino ou fundo de rio ou mar. Tinha, então, 35 anos.

Francisco Tenório, o Tenorinho, não era militante político, nem envolvido em algum movimento de contestação, mas foi levado por quatro homens mal-encarados, e se sabe que ficou trancafiado na Escola de Mecânica da Marinha (Esma) da Argentina. Não passou de um engano: “Foi sequestrado por ostentar cabelo comprido e barba, um protótipo de esquerdista”, diz a reportagem... Imagine-se o interrogatório... o cara sempre negando, e aumentando as pancadas, os choques, o sufocamentos... A ação bárbara já fazia parte da união de governos e facções de direita dos países do Cone Sul, perseguindo militantes ou simpatizantes "comunistas". Ou que assim parecesse, caso do jovem pianista - mas já pai de família - Tenorinho.

Alguns sentem saudades da ditadura. Nostálgicos, filtrando só o melhor de um tempo, esquecem que até os pacatos ou alienados ou até empolgados pelo regime podiam acabar numa fria – numa câmara fria, talvez, além de um calvário de humilhações, torturas e, ao final, a morte cruel – tudo em nome da “ordem”, de “Deus”, da “liberdade”, da “pátria”, ou seja, do reacionarismo e moralismo carola recheado de burrice e hipocrisia – e mais uma bom bocado de grana da CIA e vantagens do mando, ou seja, ladroagens variadas, desde tráfico de influência (um emprego para o sobrinho num banco estatal ou para a amante numa repartição pública qualquer), até milhões em contas particulares em paraísos fiscais. Eis os nossos intrépidos militares sul-americanos e seus aliados vinculados a “revolução” de 1º de abril de 1964! Pena que o golpe não foi uma mentira total...

Saindo das barbaridades de militares e polícia no tempo das ditaduras, dá para se perguntar: quantas e quantas vezes somos enganados pelos estereótipos, as imagens padronizadas. Roupas, cabelos, perfumes e palavreados podem nos criar simpatia ou repulsa, respeito ou desprezo conforme os nossos “modelos” internalizados. Não raro o assaltante de joalheria chega “bem vestido” e com “educação”, sendo recebido com sorriso num primeiro momento. Já o maltrapilho e de fala desarticulada é barrado pelo vigilante na porta, mesmo que esteja indo lá para comprar um óculos para a falsas... Falsas expectativas...

Nossos julgamentos precisam ir além da aparência imediata, ou seja, nos despirmos de vários preconceitos.

12 de abr. de 2012

Celebridades para não se celebrar


Sem cunho "pessoalista", mas tentando analisar atitudes de uma personalidade pública, teço o meu comentário em relação a fato ocorrido no final do mês passado:

Já não bastasse o desportista, que se destaca como técnico de futebol da Seleção Brasileira, fazer propaganda da poderosa droga álcool na forma do fermentado popularmente conhecido como cerveja... pois a personalidade, além de expor aos quatro ventos os prazeres do consumo do psicoativo, que é “por lei” restrito ao consumo adulto, e, mesmo assim, pode implicar em consequências das mais nefastas, exigindo assim enorme responsabilidade de quem consome e de quem comercializa a bebida; não bastasse faturar milhares de reais (milhões?) ajudando o comércio (mesmo que “legal”) de uma droga de alta periculosidade, pois, não bastasse isso tudo, o futebolista foi flagrado no Rio de Janeiro, dias atrás (28/03/12, à noite), em uma blitz sem a carteira de habilitação e negou-se ao teste com o etilômetro. Ou seja, possivelmente havia consumido bebida alcoólica e estava dirigindo – a combinação que atesta brutal irresponsabilidade. O dirigir sem a carteira de motorista é, no contexto, o de menos: qualquer um pode esquecer um documento. Interessa mais ressaltar que o garoto-propaganda de famosa marca de cerveja – propondo, mesmo que de forma indireta, uma relação entre consumo de álcool e esporte – não mencionou em sua nota oficial a negativa de se submeter ao “bafômetro”, mas a manifestação da secretaria de governo do Estado do Rio de Janeiro é explícita:

"O técnico [...] foi abordado por agentes da Operação Lei Seca, da Secretaria de Estado de Governo, por volta da meia-noite desta quarta-feira (28/03), durante blitz na Avenida Ministro Raul Machado, em frente à sede do Flamengo, na Gávea. Ele se recusou a fazer o teste do etilômetro, sofrendo as seguintes sanções administrativas: multa de R$ 957,70 e perda de 7 pontos na carteira. Mano estava sem a Carteira Nacional de Habilitação (CNH). A cópia do documento foi levada ao local pela mulher do técnico. O carro dele foi liberado após um condutor habilitado ter sido apresentado."

A falta de referências positivas é enorme no Brasil e no mundo. Triste ver que alguém da “autoridade” e culto da população brasileira (entre outras várias "celebridades", infelizmente) envolva-se dessa forma com o consumo de álcool. Se tivesse plena consciência das consequências do seus atos, se se importasse mais com a coletividade e o futuro da sociedade do que com ganhos imediatos, será que se prestaria a divulgador de algo que pode ser tão pernicioso?

FONTE: http://br.reuters.com/article/topNews/idBRSPE82R06H20120328


***Sobre a ilustração acima:

Imagem de divulgação de acidente com vítima fatal em Cosmópolis, SP, no ano de 2008. Os indícios apontavam para a perda de controle do motorista, que teria engerido bebida alcólica. Conforme texto de Rodrigo Guadagnim, o veículo capotou após colidir com outro veículo, deixando uma pessoa morta outra gravemente ferida. Mesmo que não se confirme a ingestão de bebida (o relato diz que havia uma garrafa de cerveja no veículo capotado), se sabe as funestas consequencias de dirigir alcoolizado. Não raro, o motorista acha estar "absolutamente sóbrio"...