30 de mar. de 2012

Tradição há seis meses...


Pode um pão de forma lançado no mercado no ano passado (2011) receber o nome de “Tradição”??

Não só pode, como há! A empresa mexicana Bimbo, que comprou a Nutrella de Gravataí, está vendendo o fatiado Tradição, que, além da denominação do produto que remete a um passado longínquo, a ancestralidade, a algo desenvolvido de forma artesanal, tem no seu logotipo, começando pelo lettering em letras cursivas (“escritas à mão”), uma colher de pau, um rolo de massa, um jarro de leite e uma tigela de bater a massa feitos de louça, fechando, ao fundo, com um saco de tecido contendo a farinha de trigo identificado com ramos do cereal.

Contrabandeando mais uma vez o historiador Hobsbawm***, temos mais uma situação de “tradição inventada” – no caso, um embuste marketeiro. Iludidos pelo estratagema cosmético-comercial via embalagem, compramos um produto megaindustrializado, feito aos milhares por hora numa linha de montagem automatizada, dentro de uma bilionária empresa transacional... pois compramos tal alimento como se feito por alguma senhora de avental, que mora lá num bucólico recanto, açando o seu pão num rústico forno de barro... E nem reclamamos da engambelação! Na verdade (parece), gostamos/desejamos essa ilusão – entre várias outras humanas situações de “eu quero acreditar”, com diz o subtítulo daquele filme de 2008 da série Arquivo X, sobre ETs e outras paranormalidades.

Não são só produtos de panificação (já mencionei biscoitos da zona de colonização ítala no RS) que recebem essa “cobertura artificial de passado”. Há muitíssimos e variados exemplos. A Oktoberfest é um deles, marcante pela invencionice à beira do patético – e perversora da história das comunidade teuto-brasileiras –, como já disse gente como Flávio Kothe, nascido em Santa Cruz do Sul em 1946, professor na UnB, doutor e livre-docente em Teoria Literária e Literatura Comparada, com pós-doutorado em Yale e nas Universidades de Konstanz, Heidelberg, Bonn e Berlim (tudo isso pra dizer que não é só um cururu como eu que fala isso da Oktober, mas uma santa-cruzense "legítimo", “da gema”, com “sobrenome alemão”, de “família tradicional”, que estudou e se pós-doutorou na Alemanha, entre outros países, sendo professor na prestigiada Universidade de Brasília, autor de dezenas de obras, incluindo um clássico dos estudos acadêmicos na área da Literatura Brasileira, a “trilogia” O Cânone Colonial, O Cânone Imperial e O Cânone Republicano).

Voltando ao pão de forma: a empresa nem se constrange em apresentar o seu produto, conforme está destacado na parte “de baixo” da embalagem:

Novo Pão de Forma Tradição, a novidade que vai deixar o seu dia a dia ainda mais gostoso.

Ou seja, usa as palavras “novo” e “novidade” na mesma frase para anunciar algo que se chama “Tradição”...

Cinismo? Esquisofrenia? Imbecilidade pura e simples? Imbecilidade deliberada? Talvez de tudo um pouco nesse mundo onde – me arrogo a dizer “filosofando” – vivemos quase sempre na superfície das coisas, sustentados numa densidade feita de babaquices; numa atmosfera baseada em falsidades e fantasias, alienados da vida para além das aparências e convenções sociais.



*** Me refiro ao livro de Eric Hobsbawm (em co-autoria com Terence Ranger), “A Invenção da Tradição”. Conforme a mini-resenha no site da Submarino, "Os autores mostram como a 'tradição' - base do nacionalismo e 'prova' de uma espécie de antiga e inatacável superioridade dos povos - é uma construção, algo criado, inventado".

23 de mar. de 2012

Imposição simbólica


Ou: “Por que TODOS são obrigados a deparar-se com um Jesus morto até numa sala pública?”

Impor-se aos outros é especialidade da Igreja Católica. Falo de cadeira. Como batizado, comungado e crismado dentro de um dos aparato ideológico mais poderosos do planeta, quase onipresente em países como o Brasil, onde, no passado, o Estado se associava ao Vaticano.

A inquisição é só um exemplo dessa imposição histórica do catolicismo. Ai de quem questionar, mesmo que sem querer, os seus ditames, as suas manifestações. Não pouca gente foi brutalmente torturada e morta por (bastava) suspeita de algum “heresia”. Usar ervas medicinais para curar doenças já poderia significar ser taxada de bruxa e ir parar no meio de uma fogueira armada e ateada a mando de autoridades papais. Giordano Bruno, pensador e cientista, não escapou da execução sumária, assim como tantos outros grandes homens e mulheres que divergiam do "poder único e total".

E os inquisitores continuam por aí. Em nome do humilde e tolerante Jesus, desqualificam quem ousar reivindicar o que é lei e denunciar o que atenta contra o direito de não ser permanentemente objeto do propagandismo confessional através de, por exemplo, crucifixos, estátuas e quadros em salas e outros locais públicos – caso das dependências do judiciário, que são custeadas por mim e por milhares que não professam religião simbolizada por uma cruz...

Os inquisitores do século XXI, agora já bastante desmoralizados, ameaçam, não obstante, com um apocalipse moral para breve em caso de retirada de tais aparatos, e reivindicam o respaldo de uma maioria numérica para justificar a sua imposição simbólica, chamando isso de “direito”. Falam em degradação humana, como se o atoleiro da civilização não fosse forjado em mais de 2 mil anos de domínio quase absoluto do cristianismo católico em nações como a brasileira.

Se a crença é tão consolidada entre o povo, porque uma reação tão indignada com a possibilidade de retirada de crucifixo de um local público? Para se manifestar a fé é preciso tanta ostensividade visual? Onde fica o respeito aos milhões que têm outra fé que não a cristã que necessita de um crucifixo na parede de uma sala? Onde está o respeito aos agnósticos, ateus e outras pessoas que não se filiam a religião alguma?

Repetindo-me: pode-se desrespeitar essa “minoria” em nome dessa suposta “maioria” de cristão que se apegam à exposição de simbolismos materiais em lugares que são de TODOS, TODOS, e não de uma parcela, mesmo que maioria numérica? Democracia é isso? Patrolar a minoria, que deve ficar resignada em sua inferioridade numérica? Em algum momento eu votei para ter o crucifixo exposto atrás dos funcionários públicos do judiciário, onde tudo é pago por TODOS, TODOS, e não só pela parcela católica da população brasileira? Tenha-se santa paciência com tal afronta e arrogância!

Enfim, que fezinha mais rala é essa que se abala com a possibilidade de não ver em todos os lugares um crucifixo? Isso não lembra a passagem bíblica do bezerro de ouro? Não é mais um bezerro de ouro, mas, da mesma forma, trata-se de um objeto material de culto...

Admiro pessoas dedicadas à religião, mas aquelas onde a sua fé não lhes tolda o horizonte, não lhes torna fundamentalista, e onde as outras pessoas têm o sagrado direito de divergir – como foi o caso de Jesus em seu tempo, conforme os contos evangélicos.

12 de mar. de 2012

Religião e especismo

Segue uma costura de e-mails de um pequeno debate via uma lista de amigos:

Falando em homenagem a Iemanjá, fiz um comentário no ano passado sobre a infeliz visão da praia (em Rainha do Mar) que tive na manhã do dia 1º janeiro de 2011, após homenagens de fins de ano que usam as águas do oceano. Na areia, “vomitado pelo mar”, se encontravam sabonetes, frascos de perfume e vários outros “aparatos” altamente poluentes – algo que eu acho inadmissível em tempos onde a consciência ambiental é indispensável para a sobrevivência do próprio planeta. Até “apelei” para que os líderes religiosos/espiritualistas estimulassem rituais que dispensem objetos não biodegradáveis. Acho que homenagens religiosas que poluem, na verdade, hoje são “ofensas” aos seres/forças ligados a elementos da natureza como o mar, as águas etc.

Aliás, se eu fosse um babalorixá, como o foi o fotógrafo e etnógrafo francês Pirre Verger, eu aboliria também TODOS os sacrifícios de animais. Sei que é a maior polêmica. Mas em nome do respeito às tradições, não se pode, por exemplo (e nada ver com babalorixá), ficar aceitando coisas como a extirpação de clitóris de garotas pubescentes, como acontece em alguns lugares do mundo, entre outras barbaridades. Animais, para mim, são seres sencientes, ou seja, muito semelhantes (para não dizer iguais) aos humanos, quer dizer, com sensibilidade a dor, portanto, sofrem, têm medo, saudade – como podem comprovar aqueles que lidam amorosamente com animais doméstico e até “os de corte” – além do que já nos diz a neurociência animal.

Por mais restrições que eu tenha a várias vertentes do cristianismo, ao menos os rituais de sacrifício – tão presentes no Velho Testamento – foram substituídos, em muitos casos, pelos simbolismos do vinho (bebe-se o sangue) e da hóstia (canibaliza-se o corpo de Cristo). Assim, não se sangra animal, nem ingere-se carne humana – como o faziam os astecas em seus rituais. (Já pensaram se os descendentes indígenas na América Central reivindicassem o direito de seguir a tradição de seus antepassados??)


Está na hora de uma reconfiguração, creio eu. Até mesmo a religiosidade pode incorporar as novas compreensões humanas. Sugiro que ao invés de matar um cabrito ou bezerro, a pessoa corte o seu próprio braço e ofereça às deidades... O sangue vai ser muito semelhante, assim como a dor...


Reforço: não falo “só” das religiões de matriz africana. No Brasil é, provavelmente, a vertente religiosa que mais faz uso de sacrifício de animais, mas isso existe dentro do judaísmo e do islamismo (para falar dos monoteísmos), entre outros milhares de outros cultos existentes no mundo.

Comer animais é algo que se pode admitir, considerando que somos omnívoros, biologicamente adaptados para obter e digerir carne. Em alguns lugares, os vegetais são praticamente inexistentes, como em pontos do ártico ondem vivem esquimós; eles dependem completamente da carne – e vísceras, ossos, peles, gordura etc. – para sobreviverem.

Nos sacrifícios rituais, na minha visão, o bicho é morto sem que haja, digamos assim, uma “necessidade concreta”; o sangue “desperta” uma força que poderia ser “despertada” por outro elemento simbólico ou ato ritualístico sem a morte real do animal.


Como fiquei sabendo, é ótimo que já há uma preocupação entre lideranças religiosas afros. Nos movimentos que questionam a morte e exploração de animais pelos humanos (os veganos à frente) se usa o termo ESPECISMO, similar a RACISMO; assim como certos grupos humanos se achavam no direito de escravizar outros grupos, considerando-os “inferiores”, nós continuamos submeter os animais aos nossos caprichos, ou seja, explorando-os ao ponto de matá-los – até por “razões espirituais”! A arrogância humana não tem limites; nos achamos os dono de tudo no universo, criando teorias que nos põem no ápice da criação e nos autoriza a sacrificar outros seres em nome de concepções abstratas.


Eu sou pouco conhecedor (para não dizer ignorante) da religiosidade e cultos afros, mesmo que conviva com devotos desde piá, tenha frequentado terreiros e lido algumas coisas esparsas sobre o assunto (citei o Pierre Verger, por exemplo).


Pois é. Falei que a questão (sacrifício de animais) é polêmica. Sim, dá para usar a “defesa dos animais” como um instrumento/escudo para exercer o racismo contra os cultos de matriz afro. Creio que não é o meu caso e não deve ser o de muita gente sinceramente preocupada em fazer valer uma perspectiva menos antropocêntrica e de respeito à vida de todos os seres sencientes, superando o especismo, o “racismo” contra os animais – tidos como “inferiores” e passíveis de morte, como já aludi.

Ter cuidados com o bem-estar e a diminuição do sofrimento dos animais a serem abatidos já é bom. Mas continua sendo uma arbitrariedade dos homens/mulheres sacrificar um outro ser para satisfazer algum preceito religioso ou gula (aquilo que ultrapassa a necessidade nutricional – no meu conceito). Penso que se deve evitar o fundamentalismo religioso, o dogmatismo, tanto quanto se evitar o preconceito racista e outros. Com toda certeza, os rituais, a maneira de conduzir a religiosidade humana foi se alterando ao longo do tempo e sempre será assim – “uma metamorfose ambulante”.

Bem, o debate é infindável e precisamos de pessoas que tenham conhecimentos profundos sobre história das religiões, teologia, ética, biologia animal (humanos inclusos) etc. Não pode ser um debate somente entre religiosos, mas incluir outros campos do conhecimento humano e perspectivas de existência.


Desculpa se fiz alguém entender que os filiados a cultos de matriz afro são fundamentalista. Na minha argumentação, disse que se deve – de modo geral, referindo-se a todas as religiões e todas as pessoas (me incluindo, obvio) – evitar fundamentalismos, ou seja, as explicações dogmáticas, fechadas, sem chances para críticas.

O sacrifício de animais é uma questão, no meu entendimento, que exige uma compreensão não só da religiosidade (de matriz afro e outras que se usam do sacrifício), mas compreender também a postura de quem é contrário a morte e exploração – seja para qualquer fim – de animais, caso dos veganos, que são vegetarianos restritos. Contrapor-se argumentos, mantendo-se a abertura de um lado e outro (ou outros). Só assim há avanços, penso eu.

Não estou tendo grandes cuidados com as palavras e nem me detalhando. Como eu disse, o assunto é complicado e praticamente sem fim. Particularmente, digo mais uma vez, aboliria o sacrifício de animais nos cultos religiosos, mas entendo a enorme dificuldade de se chegar a esse termo por conta de tradições culturais que merecem o maior respeito. Mas esse mesmo respeito se deve a quem concebe os animais como seres senscientes, que não deveriam ser mortos por motivo religioso ou, mesmo, alimentar.