Estou terminando de ler um livro – Perspectivas sociológicas – de um sociólogo americano chamado Peter Berger. A edição original em inglês saiu em 1963. A editora Vozes botou uma tradução no Brasil, que já está na 18ª edição. Isso para dizer que o livro já é quarentão e foi muito demandado.
Escrito como uma espécie de introdução geral à matéria, não caiu na estrutura indigesta de manuaisões “didáticos” que conheci no tempo da Puc e Ufrgs. Berger é um erudito, conhece em detalhes a sociologia, em especial a americana (ele foi professor na famosa New School for Social Research) e o mundo do seu tempo. Mas escreve sem pedantismo (embora não abrindo mão de uma certa sofisticação na linguagem), sem querer parecer um gênio, com um humor crítico, irônico, mordaz, muito estimulante. É um livro sério sem perder a graça! Pretende ir além de securas sociológicas e hipercientificismo mecânico, penetrando em campos, digamos assim, mais férteis a uma compreensão/cosmovisão/ação humana libertária.
No prefácio ele diz assim (na primeira linha!): “Este livro foi escrito para ser lido, e não para ser estudado.” Noooooosa!!!
Selecionei umas partes que queria mandar pra vocês. Tem a ver com os debates aqui sobre submissão e transcendência dos humanos em sociedade, ou seja, até que ponto conseguimos nos libertar dos “papéis” que desempenhamos no “teatro” que fomos introduzidos paulatinamente, desde a barriga de nossas mães...
Não sei se vou ter paciência para digitá-las todas. E nem sei se alguém aqui da lista tem de fato algum interesse e saco para lê-las!!! Enfim...
Vou pelo menos mandar um trecho, que está mais para o final do livro, num capítulo que tem o subtítulo indicador “A sociedade como drama”. Berger, a esta altura, começa a “puxar da manga” caras como o filósofo francês Sartre e o escritor russo Tolstoi. Vai aí:
Suponhamos um homem que desperte de noite, de um desses pesadelos em que se perde todo o senso de identidade e localização. Mesmo no momento de despertar, a realidade do próprio ser e do próprio mundo parece uma fantasmagoria onírica que poderia desaparecer ou metamorfosear-se em um piscar de olho. A pessoa jaz na cama numa espécie de paralisia metafísica, tendo consciência de si, mas um passo além daquele aniquilamento que avultara sobre ela no pesadelo recém-findo. Durante alguns momentos de consciência dolorosamente clara, pode quase sentir o cheiro da lenta aproximação da morte e, com ela, o nada. E então estende a mão para pegar um cigarro e, como se diz, “volta-se à realidade”. A pessoa se lembra de seu nome, endereço e ocupação, bem como dos planos para o dia seguinte. Caminha pela casa, cheia de provas do passado e da presente identidade. Escuta os ruídos da cidade. Talvez desperte a mulher e as crianças, reconfortando-se com seus irritados protestos. Logo acha graça da tolice, vai à geladeira ou ao barzinho da sala, e volta a dormir resolvido a sonhar com a próxima promoção.
Até aí, muito bem. Entretanto, em que consiste exatamente a “realidade” a que o homem acabou de voltar? É a “realidade” do seu mundo socialmente construído, aquele “mundo aprovado” em que as perguntas metafísicas são sempre risíveis, a menos que tenham sido capturadas e castradas em ritualismo religioso aceito sem discussão. A verdade é que esta “realidade” é, com efeito, muito precária. Nomes, endereços, ocupações e mulheres desaparecem. Todos os planos terminam em extinção. Todas as casas por fim se esvaziam. E mesmo que vivermos todas nossas vidas sem termos de enfrentar a torturante contingência de tudo quanto somos e fazemos, por fim temos de voltar àquele momento de pesadelo em que nos sentimos despojados de todos os nomes e de todas as identidades. Ademais, sabemos disso – o que nos conduz à inautenticidade de correr em busca de abrigo. A sociedade nos oferece nomes para nos proteger do nada.
Escrito como uma espécie de introdução geral à matéria, não caiu na estrutura indigesta de manuaisões “didáticos” que conheci no tempo da Puc e Ufrgs. Berger é um erudito, conhece em detalhes a sociologia, em especial a americana (ele foi professor na famosa New School for Social Research) e o mundo do seu tempo. Mas escreve sem pedantismo (embora não abrindo mão de uma certa sofisticação na linguagem), sem querer parecer um gênio, com um humor crítico, irônico, mordaz, muito estimulante. É um livro sério sem perder a graça! Pretende ir além de securas sociológicas e hipercientificismo mecânico, penetrando em campos, digamos assim, mais férteis a uma compreensão/cosmovisão/ação humana libertária.
No prefácio ele diz assim (na primeira linha!): “Este livro foi escrito para ser lido, e não para ser estudado.” Noooooosa!!!
Selecionei umas partes que queria mandar pra vocês. Tem a ver com os debates aqui sobre submissão e transcendência dos humanos em sociedade, ou seja, até que ponto conseguimos nos libertar dos “papéis” que desempenhamos no “teatro” que fomos introduzidos paulatinamente, desde a barriga de nossas mães...
Não sei se vou ter paciência para digitá-las todas. E nem sei se alguém aqui da lista tem de fato algum interesse e saco para lê-las!!! Enfim...
Vou pelo menos mandar um trecho, que está mais para o final do livro, num capítulo que tem o subtítulo indicador “A sociedade como drama”. Berger, a esta altura, começa a “puxar da manga” caras como o filósofo francês Sartre e o escritor russo Tolstoi. Vai aí:
Suponhamos um homem que desperte de noite, de um desses pesadelos em que se perde todo o senso de identidade e localização. Mesmo no momento de despertar, a realidade do próprio ser e do próprio mundo parece uma fantasmagoria onírica que poderia desaparecer ou metamorfosear-se em um piscar de olho. A pessoa jaz na cama numa espécie de paralisia metafísica, tendo consciência de si, mas um passo além daquele aniquilamento que avultara sobre ela no pesadelo recém-findo. Durante alguns momentos de consciência dolorosamente clara, pode quase sentir o cheiro da lenta aproximação da morte e, com ela, o nada. E então estende a mão para pegar um cigarro e, como se diz, “volta-se à realidade”. A pessoa se lembra de seu nome, endereço e ocupação, bem como dos planos para o dia seguinte. Caminha pela casa, cheia de provas do passado e da presente identidade. Escuta os ruídos da cidade. Talvez desperte a mulher e as crianças, reconfortando-se com seus irritados protestos. Logo acha graça da tolice, vai à geladeira ou ao barzinho da sala, e volta a dormir resolvido a sonhar com a próxima promoção.
Até aí, muito bem. Entretanto, em que consiste exatamente a “realidade” a que o homem acabou de voltar? É a “realidade” do seu mundo socialmente construído, aquele “mundo aprovado” em que as perguntas metafísicas são sempre risíveis, a menos que tenham sido capturadas e castradas em ritualismo religioso aceito sem discussão. A verdade é que esta “realidade” é, com efeito, muito precária. Nomes, endereços, ocupações e mulheres desaparecem. Todos os planos terminam em extinção. Todas as casas por fim se esvaziam. E mesmo que vivermos todas nossas vidas sem termos de enfrentar a torturante contingência de tudo quanto somos e fazemos, por fim temos de voltar àquele momento de pesadelo em que nos sentimos despojados de todos os nomes e de todas as identidades. Ademais, sabemos disso – o que nos conduz à inautenticidade de correr em busca de abrigo. A sociedade nos oferece nomes para nos proteger do nada.
Constrói um mundo para vivermos e assim nos protege do caos em que estamos ilhados.
Oferece-nos uma linguagem e significados que tornam esse mundo verossímil. E proporciona um coro firme de vozes que confirmam nossa crença e calam nossas dúvidas latentes.
*Escrito em 2005.
**Berger está falando sobre a possibilidade – “a liberdade a que estamos condenados”, conforme as palavras de Sartre – de executarmos ou não certos papéis ou atos socialmente estabelecidos.
***O autor diz que, em contraponto a uma existência humana inautêntica, “Existir autenticamente consiste em viver em plena consciência da natureza singular, insubstituível e incomparável da personalidade”.