Demos graças... às bactérias!
Mais do que qualquer deidade abstrata, criadas e desenvolvidas nas diversas tradições culturais da breve história humana, caso do deus único do cristianismo, judaísmo e islamismo, talvez uma das nossas grandes reverências deveriam ser não para tais “entes transcendentais”, mas para as tão terrenas bactérias!
No caso, nossa reverência deveria ser às bactérias presentes em plantas que fixam o nitrogênio. No livro “Diário de Oaxaca”, de Oliver Sacks, o afamado neurologista, professor na Universidade de Columbia, EUA, autor de várias obras de divulgação científica, diz o seguinte:
“Os animais, os vegetais superiores e até as ceratofiláceas [‘plantas aquáticas de folhas finas e muito divididas’...] podem se achar superiores, mas em última análise são todos dependentes de aproximadamente cem espécies de bactérias, pois só elas conhecem o segredo de fixar nitrogênio do ar para que seja possível construir proteínas”. (p. 48)
Ele explica:
“Somos banhados em nitrogênio; quatro quintos da atmosfera compõem-se desse elemento. Todos nós, animais, plantas e até fungos precisamos produzir ácidos nucleicos e aminoácidos, peptídeos e proteínas. Mas nenhum organismo além das bactérias é capaz de usá-lo diretamente. Por isso, somos todos dependentes dessas bactérias fixadoras de nitrogênio para converter o nitrogênio atmosférico em forma de nitrogênio que possamos usar. Sem isso, a vida na Terra nunca teria ido muito longe.” (p.50)
A observação sobre a importância de determinadas plantas serem mantidas no solo – permitindo a continuidade de cultivos, ou seja, a existência da agricultura e, consequentemente, da pecuária –, é antiga. Mas saber-se o porquê disso é relativamente recente:
“Só no século XIX percebeu-se que os estranhos nódulos presentes em raízes de muitos legumes eram cheios de bactérias, e que estas, com suas enzimas especiais, podiam fixar o nitrogênio atmosférico e disponibilizá-lo para a planta. Quando por fim essas plantas se decompõem, os compostos de nitrogênio, agora assimiláveis, podem ser liberados no solo [permitindo o desenvolvimento dos vegetais, que por suas vez, alimentam os demais seres dentro da cadeia alimentar]. (p.51)
A dádiva da vida, da vida humana em específico, tem a ver com um longuíssimo e complexíssimo processo evolutivo do planeta. E as bactérias têm um peso fundamental, já que são seres indispensáveis a vida humana. Assim, “elas” mereceriam muito do nosso reconhecimento. Entretanto, quão pouca consideração para fatos concretos, e quão grande devoção para figuras do reino do fantástico e do incorpóreo.
Um “culto às bactérias” ao menos teria uma autenticidade comprovada: são essas criaturas que permitem a nossa existência; não se necessita de fé para terem algum efeito; basta a observação de que sem a sua “intervenção”, seres humanos, eu, tu, nós jamais teríamos existência... Amém [“assim seja”]!
Ilustração: "Nostoc Cyanobacteria, with Heterocysts Important in Nitrogen Fixation"