6 de jun. de 2013

Feriado de sangue


Vai pra vocês um comentário que fiz em uma lista. Só para não perder a oportunidade de dizer uma bobagem também para os (raros) leitores deste espaço...

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Quanto ao último feriado do dia 30 de maio, li uma nota na imprensa que o Corpus Christi se relaciona a um “milagre” ocorrido em 1263 na localidade italiana de Bolsena. Um padre alemão em peregrinação, descrente do dogma católico de que Cristo está presente na hóstia, viu-a “sangrar”, inclusive manchando a toalha do altar, enquanto o sacerdote duvidoso rezava uma missa por lá. Emissários papais teriam confirmado o fenômeno. Na cidade vizinha, Orvieto, onde o pontífice Urbano IV residia, foi exposta a hóstia sangrada, criando-se também uma festividade para marcar o “acontecido”, assim nascendo a tradição comemorativa que propagou-se por todo o mundo católico, assim como um sem número de “histórias extraordinárias”.

Parece-me algo um tanto (um tantão!) macabro isso de verter sangue de uma hóstia... E além do muito improvável (para não dizer completamente fantasioso) transformado em “fato oficial” de abrangência planetária, levado muito a sério – inclusive tornado feriado nacional no catolizado Brasil –, há o reforço do aspecto canibalístico do ritual da eucaristia: o “comer o corpo de Cristo”, que, em certos casos, como lá em Bolsena, há 750 anos, implica não só deglutir simbolicamente a carne, mas também literalmente o sangue de Jesus. Aliás, na falta do sangue real, há o vinho tinto, bebido pelos padres nas missas...

Interessante que o aspecto canibal e outros aspectos sanguinolentos do cristianismo romano (há também milagres que implicam chagas, cruzes e estátuas vertendo sangue etc.), tais alusão a antropofagia, a dores e ferimentos profundos não causam incômodos em muita gente, enquanto estas mesmas pessoas acham um “horror” rituais onde aves e outros animais são “sangrados” para (supostamente) estabelecer contatos transcendentais.

Particularmente, e em certa medida, eu prefiro o sacrifício e a dor simbólicas dos católicos do que a expiação ou consubstanciação de algo através da tortura e morte “terceirizadas” em galinhas, pombos, cabras, cordeiros etc. para o atendimento de demandas e preceitos desse primata inventivo e cheio de empáfia autodenominado humano. Em todo o caso – sejamos católicos, umbandistas, espíritas, judeus, muçulmanos, seisho-no-ies, teósofos etc. –, estamos diante da mesma necessidade de sermos algo mais além do que componentes inseparáveis de um planeta rodeado da mais aterradora escuridão, que nos faz cantar e contar histórias que nos apaziguem em nossa fome e desespero atávicos.


*** Sim, Jesus na cruz é um culto ao sofrer – pregos enormes, mãos furadas, ossos quebrados, coroa de espinhos, vinagre na boca, estocadas de lança, sangue correndo, rosto crispado; um filme de horror completo, prato cheio para masoquistas e sádicos! Um Cristo Solar me parece bem mais edificante. Mas num mundo com tantas disparidades, com poucos com tanto e a massa vivendo a pão e água, é preciso alguma justificação (“Jesus também sofreu!”) e “recompensa” para tanta resignação (a bonança pós-morte depois de uma vida em meio à tempestade inclemente). Compaixão e cooperação parecem ser a essência das mensagens religiosas tradicionais. Mas parece que tudo vira do avesso e nos tornamos sectários odiosos, prontos a esfaquear literal ou metaforicamente quem discordar da “A Verdade”...

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