25 de jun. de 2013

Caspary conta a sua história

Terminei de ler na semana passada uma publicação de 2003, que há anos estava na minha “lista”. Um relato bio e bibliográfico feito pelo sr. Hildo Caspary. Além da sua própria vida, da infância à adultez, Hildo dedica boa parte do seu livro ao seu pai, Adolfo Capary, e diversos parentes paternos e maternos que viveram em Santa Cruz do Sul ou têm relação com sua família e comunidade desde os primeiros tempos dos assentamentos de colonos germânicos*.

É uma publicação toda ela sui generis, “caseira”, da brochura em si, aos tipos gráficos, diagramação, até na sequencia de apresentação, que não segue uma edição comum às biografias. Lembra uma espécie de álbum de anotações, com recortes, fotos, além de um linguajar não-acadêmico e franca referência a contatos pessoais, caso quando os Caspary diz que confirmou por telefone a informação com conhecidos em outra cidade.

E aí está o sabor especial do livro. Em meio às 200 páginas, muitas informações interessantes. Para quem quiser desenvolver algum trabalho sobre empreendedorismo e história do comércio em Santa Cruz na transição dos séculos XIX, XX e XXI, terá muitos detalhes e pistas para desenvolver pesquisas. Assim como dá política e formação de instituições como a Associação Comercial e Industrial, a Universidade de Santa Cruz etc.

Para mim, sempre “pescando” dados sobre a diversidade humana de origem étnica, cultural, social e geográfica em Santa Cruz, há várias pequenas pérolas no relado do sr. Caspary.

Fala de uma família de sobrenome Cerny, tchecos (ou com origens no que seria a República Tcheca de hoje), que residia “em um chalé do outro lado do arroio”, ou seja, nos arrabaldes da cidade (p.56). Caspary menciona casamentos, ainda no final do século XIX, entre teuto-descendentes e gente vinda de outros lugares do norte da Europa, caso da Noruega ou Ilhas Friesland, caso da emigrada Maria Mohring, que, depois de enviuvar, casou-se com o norueguês Ommen Timens Behrends (p.31).

Seu pai, Adolfo, por relações próximas, chegou a participar de um casamento de ciganos, que seguidamente “acampavam com sua barracas na chamada ‘várzea’, a esquerda de quem desce a atual Avenida Independência.”

Fala do “extraordinário serviço prestado por Ernesto C. Iserhard, na época em que procuraram nazificar as sociedades de Santa Cruz”. Bastante ativo na comunidade em todo o município, Ernesto foi gerente da Cervejaria Santa Cruz de 1928 a 1944, empreendimento dos mais interessantes para mais um estudo sobre a indústria no interior gaúcho. Sua expressão foi tal, que acabou sendo comprada pela poderosa Cervejaria Continental S.A., de Porto Alegre, num negócio cujas cláusulas impediam que fosse reaberta como cervejaria, desaparecendo diversas marcas de cervejas e refrigerantes. A origem de tal cervejaria recuaria a “pouco antes de 1868”, em Linha Santa Cruz, “talvez uma das primeiras da Província de São Pedro”.

Caspary reproduz uma carta assinada por Rudolf e Anna Gressler, escrita de Santa Cruz, em 1852, dirigida a parentes no que hoje seria a Alemanha (como é sabido, antes de 18571, enquanto país, a Alemaha não existia). Foi retirada do livro “Os velhos Gressler”, de autoria de Paulo Oscar Ernesto Gressler, publicado em 1949. Há nesta carta diversas informações sobre a emigração, a viagem, a chegada ao Brasil, as passagens por Porto Alegre, Rio Pardo e, enfim, a vida já nos lotes coloniais aqui na região. O tom da carta, embora várias agruras, é de muita satisfação com a recepção no Brasil, os encaminhamentos e a área de terra recebido – “mais de meia milha de comprimento”, com uma “vegetação que supera toda idéia”. No dia 21 de outubro de 1852, Rudolf e Anna já estão no que deveria ser o Faxinal do João Faria, instalado no “prédio de recpção que Kläudger em Hamburgo menciona em seu contrato”. Na verdade, são construções rústicas, usando um tecnologia propvavelmente herdada dos povos indígenas e africanos, ou seja, “galpões” com cobertura de folhas de palmeiras e outros materias naturais do lugar – algo muito provisório, mas onde o casal permanece por quatro semanas, antes de serem levados ao assentamento propriamente. Há muita expectativa de ganhos com o lote e a produção agrícola.

Uma curiosidade é o consumo de carne de macaco; os Gressler dizem que a acharam “excelente”. “Há aqui duas espécies de macacos, pequenos pretos [pregos?] e grandes vermelhos [bugios?]”. A caça é abundante e a proteína animal parece não ser um problema. O problema se verá décadas depois, com uma larga destruição do ecossistema, causada pelas centenas de assentamentos de gente de origem teuta e outros grupos abruptamente introduzidos em uma floresta luxuriante, na época, antes de 1849, vagamente povoada por negros aquilombados, cablocos arranchados em rincões e os candidatos a sesmeiros estrategicamente posicionados com agregados, além, evidente, de povos indígenas, já na região há séculos, muito antes de brancos e negros, mas “espantados” cada vez mais pelos machados ecoando cada vez com mais volume pelos vales, seguindo-se os incêndios, que devastam árvores, plantas, animais... Algo nada bonito para se lembrar; na verdade, algo não mencionado nas crônicas apologéticas sobre a colonização alemã***.

Na mesma carta, também salta o alerta dos Gressler em relações a certos “elementos perniciosos”, patrícios alemães, “pessoas inúteis, receosas do trabalho”,  com que não se devia estabelecer relações e sofrer influência. Outra situação que fere a determinadas narrativas onde se dá a ideia de que a virtude é completamente generalizada por conta de sobrenomes.

Sobre o desuso das líguas germânicas nas comunidades locais****, evidencia-se que não se trata de um subproduto da pontual repressão a “língua alemã” nos tempos de guerra, onde a Alemanha (aí, sim, já estruturada como país) se pôs em conflito mundial: Rudolf e Anna registram na carta que, embora a valorização do lote colonial, pela produção rural obtida, seria enorme em apenas 10 anos, valendo “uma enorme quantia de dinheiro”, se alguém pensar em se estabelecer “Com comércio (negócio) sem conhecimento da língua [portuguesa], não há nada a fazer”; pressupõe-se a necessidade do aprendizado do português para que tais empreendimentos possam prosperar, deixando-se de lado os dialeto teuto-brasileiro, já que negociam nas bases jurídicas, éticas, com outros vendedores, atacadistas, transportadores, anotadas na língua oficial do Brasil. Ou seja, a língua portuguesa brasileira se impõe paulatinamente por razões pragmáticas, e não – unicamente – por alguma imposição de fundo ideológico ou pela mão de ferro repressiva germanofóbica.

Assim é que, nos relatos pessoais, de autobiógrafos e historiadores diletantes, há boa matéria para aprofundamentos via a pesquisa acadêmica – que, aliás, acho eu, jamais será isenta de posicionamentos, “neutralidade”, sempre será uma narração a partir de um posicionamento e uma visão de mundo contextual.


Complementos:

*Ressalta-se que o processo históricos da colonização ocorrida na região envolveram a vinda e a integração entre diversos povos e pessoas de diferentes procedências, em torno de um projeto governamental de loteamentos rurais e núcleos urbanos, com investimento de recursos públicos, inclusive um estafe de administradores e outros servidores e contratados.

**Povoado fundado décadas antes da chegada das primeiras levas de imigrantes, origem do núcleo urbano de Santa Cruz.

***Já abordamos esse assunto em textos anteriores e há o importante trabalho do professor, doutor em História, hoje na Universidade Federal de Santa Catarina, professor Sílvio Correa, junto com mestre em Desenvolvimento Regional, jornalista Juliana Bublitz, “Terra de Promissão: uma introdução à Eco-história da colonização do Rio Grande do Sul” (2006), onde apresenta-se as posturas nada conservacionistas dos colonos e, mesmo, dos projetos de assentamentos, sempre com a ideia de erguer a civilização, o que significa destruir a floresta nativa e caçar sem preocupação todos os animais selvagens possíveis, o que causou rapidamente um impacto no ecossistema, acarretando a extinção de espécies da flora e fauna, produzindo situações como enchentes devastadoras e mortais na região. Obviamente, precisa-se relativizar, já em no século XIX tais preocupações praticamente não existiam.

****Obviamente, também não se falava o Alemão padrão de hoje, e, sim, diversos dialetos teutos, cada vez mais intercambiados entre si e com o Português.

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