3 de dez. de 2010

Uma pequena história de amor, uma grande lição de História local


Fiquei bastante impressionado com a beleza, riqueza e, também, bom humor e muita sensibilidade expressa no romance Pequena História de Amor, de Wilson Müller, santa-cruzense nascido e criado até juventude numa comunidade típica, ou seja, alguém que vivenciou – e por seu evidente interesse – e inteirou-se do passado local em seu detalhes, consubstanciando na forma literária uma narração, que além de divertir e comover, nos traz muitas informações sobre o cotidiano das povoações de teuto-descendentes de meados do século passado.

O autor não se filia a apologistas de um passado mitificado, cultuando abstrações tão edificantes quanto falsas. Ele traz à tona “a vida como ela é” das pessoas de uma comunidade típica formada por teuto-descendentes no interior de Santa Cruz do Sul. Müller revela a sociedade e cultura teuto-brasileira em sua crueza – e não um arremedo de “louvação”, que alguns tentam impor em livros e artigos, deturpando a complexidade da realidade em nome de um tradicionalismo inventado, tão semelhante ao que se faz com o “gaúcho fabricado” de livros autorizados por CTGs.

Para além do drama a se desenrolar, envolvendo as vidas dos personagens, saltam ali os hábitos sociais e elementos culturais daquela situação histórica e geográfica ímpar – e por isso tão interessante. Os alimentos, os rituais, as diversões, as convenções, os relacionamentos etc.

Já nas primeiras “cenas”, nas primeiras páginas da obra, o casal protagonista, em sua humilde moradia, oferecem alimentos a crianças que lhes visitam numa tarde. Quais são esses alimentos? Pinhão e bata-doce assados na chapa do fogão a lenha, e chimarrão... O agricultor Bruno degusta o seu “aromático” palheiro, feito de fumo em rolo produzido por ele mesmo. Só nesta “cena”, já fica patente como os alimentos e hábitos de uma brasilidade autêntica se incorporaram à vida daquelas pessoas cujos antepassados vieram de longínquos países.

Complementos:

*Situações e acontecimentos que a nostalgia e a mitificação peneiram (ou recalcam) na apologia de um passado composto somente de virtudes, aparecem na narração do Pequena história de amor. A título de exemplo: a exploração aviltante no comércio dos bodegueiros teuto-descendentes ali da própria comunidade; o alcoolismo e viciosidades das rodas de cachaça; os conflitos comunitários de sérias consequências por conta de diferenças de filiação religiosa e por motivações fúteis, escondendo/revelando antipatias agudas entre pessoas do mesmo lugar, com fofocalhadas internas e mesquinharias; interferências no meio ambiente e paisagem natural, etc. Entretanto, a vida ali vivida tem suas riquezas, belezas e bondades – naturalmente entremeadas a misérias, feiuras e vilanias...

**O chimarrão está sempre presente nas casas, no hábito familiar e nas rodas de conversa dos adultos – nas alegres reuniões de domingo das senhoras e, até, nos cinzentos velórios. Muito interessante notar tal incorporação de um hábito tão gaúcho, tão mestiço sul-brasileiro, nas comunidades de teuto-descendentes. Assim, muito mais que chope ou cerveja, é o chimarrão e a brasileiríssima cachaça (a caninha) as bebidas "típicas" do cotidiano da população.

***Aliás, outra referência “muito” luso-brasileira (que também me dei conta lendo trechos do livro Açúcar, do Gilberto Freyre), recorrente e por demais significativa no romance, aparecendo de formas direta e indireta, é o da economia da cana-de-açúcar – cultivo, beneficiamento, consumo e hábitos ligados a isso, arraigados na comunidade teuto local e, ao mesmo tempo, tão centrais na história e vida do Brasil. Com certeza, os colonos assentados, na medida que se instalavam, iam aprendendo as técnicas agrícolas e de fabrico de produtoso, fazendo da cana um dos seus meios de subsistência. E assim como o já mencionado chimarrão, o chá ancestral dos índios do Cone Sul-americano – também incorporado e ataviado pelos ibéricos e seus descendentes –, os “alemães” logo “pegaram” os hábitos do consumo da cana, seja in natura (até para o consumo animal) e seus derivados, como o melado, o açúcar mascavo, a rapadura e outros alimentos onde são componentes indispensáveis (chimias e naquela “sopa de leite” que o personagem Bruno janta todos os dias), além, óbvio, da “mardita” cachaça (o destilado alcoólico mais popular e característico do nosso país)! São elementos arraigados desde muito, que se incorporaram a identidade teuto-brasileira na região santa-cruzense, compondo incluive a paisagem, onde ainda se vê (cada vez mais raramente, infelizmente) as pequenas e rústicas moendas de cana, numa espécie de “pequeno nordeste” (engenhos) colado em nossas paragens “germânicas”. (Uma das agradáveis imagens recorrentes da minha infância é a velha moenda que havia num potreiro nas imediações da casa dos meus tios Albano e Ieda, na então teuto-brasileiríssima Linha Terezinha, interior de Venâncio Aires, onde passamos muitos domingos, natais e páscoas quase lendárias.)

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