Iniciativas locais para relembrar o passado podem ser muito boas. O problemas são as apologias, que, ao mesmo tempo que louvam alguns feitos – esquecendo que, na história humana, também sempre há, em meio a virtudes, vilanias, perfídias, fracassos –, não se referem a complexidade dos fatos e subalternizam outros grupos, mesmo que sem a intensão deliberada.
Uma das complexidades patroladas por aqui é – só para começo de conversa – o do termo germânico. “Magicamente”, se homogeneíza e pasteuriza o que foi uma diversidade de povos europeus e outras singularidades de grupos, pessoas, contextos sociológicos, históricos etc. que empurraram milhares de pessoas para o Brasil a partir de meados do século XIX, para falarmos do início dos planejados assentamentos rurais aqui no Vale do Rio Pardo.
E qual o objetivo disso? Da homogeneização e pasteurização? Ora, fomentar o turismo... E, enfim, inconfessadamente, o (pre)domínio étnico-político no município, é claro!
Isso já foi exposto muitas vezes, mas o efeito ainda é pequeno e entristece ver-se o nível de nossa reinante mediocridade no campo historiográfico e simbológico, contradizendo até mesmo como hoje se estuda a história da Brasil e mundial no nosso ensino fundamental, ou seja, criticamente.
Recentemente, em um convite para um evento de “163 anos da Imigração”, que ocorreria em Linha Santa Cruz, o texto, ao reforçar o relato sobre a “origem germânica” da localidade – e por extensão (o “mito fundador”), de toda Santa Cruz do Sul – não menciona, por exemplo, que o primeiro nome conhecido de Linha Santa Cruz não é “Alte Pikade”, e, sim, Picada do Abel, referência ao tenente-coronel Abel Corrêa da Câmara, que, através de seu capataz, Delfino dos Santos Morais (MÜLLER, 1999), abriu a estrada (picada) entre o Faxinal do João Faria (povoado muito anterior a Linha Santa Cruz) com a região serrana, ligando, assim, esta parte do planalto com a cidade de Rio Pardo e o seu importante porto à época (MENEZES, 1914). E não esquecendo que toda a região era habitada, desde tempos imemoriais, por vários grupos indígenas (RIBEIRO, 1993) e, inclusive, o caminho da Picada do Abel foi traçado provavelmente com referências a trilhas indígenas usadas por séculos. Também o texto não menciona que o profissional que executou o loteamento rural de Linha Santa Cruz, um projeto do governo provincial do Rio Grande do Sul (financiado com recursos públicos gerados, inclusive, pelo trabalho escravo), tinha também um significativo nome, aludindo a uma inequívoca luso-descendência, o engenheiro Frederico Augusto de Vasconcelos Almeida Pereira Cabral (MÜLLER, 1999).
Há alguma homenagem ou mesmo leve referência a tais personalidades e aos trabalhadores acaboclado e negros que colocaram a mão na massa na abertura das primeiras picadas, pontes, os lotes e outras infraestruturas, incluindo muito especialmente em Linha Santa Cruz, a antiga Picada do Abel? Não, obviamente. E aí está a um reiterado exemplo da estratégia (consciente ou inconsciente) de reduzir a história santa-cruzense a uma apologia monoétnica, social e intelectualmente empobrecedora, além de traidora da verdadeira teuto-brasilidade, transformada na caricatura bizarra ao ser representada por coisas como a Oktoberfest (KOTHE, 2001).
Até quando vamos ficar contando a história e desenvolvimento de Santa Cruz de um jeito tão limitado, tão discriminador, tão deturpado? A Associação de Moradores de Linha Santa Cruz, promotora do evento alusivo aos “163 anos de Imigração” (19/12/12), tem dado provas de estar a serviço de tal “simplificação” bastante questionável. Sim, é possível e bom homenagear. Mas podemos pensá-la de um jeito mais abrangente, e de uma forma que realmente fomente a integração comunitária ao invés de uma germanofilia mal disfarçada, além de artificial.
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