28 de dez. de 2012

Santa Cruz: história, nostalgia e germanofilia

Compartilho com vocês alguns comentários que fiz com outras pessoas:

Paralelo ao meu gosto por literatura e ao que se refira a, digamos, questões sociais, tenho uma militância já de 12 anos no campo da promoção da comunidade negra aqui em Santa Cruz, iniciada lá no Coletivo de Estudos e Debates Étnico-Culturais (Cedecs), que foi dar no GT-Afro (Grupo de Trabalho pela Promoção da Comunidade Negra), que puxou e colaborou bastante na construção do COMPIR, hoje lamentavelmente, na prática, extinto por “obra” da própria administração municipal, produzindo um desestímulo geral na mobilização em prol da valorização e inserção cultural e socioeconômica do povo negro.

Pois esse interesse me fez acompanhar o que saía e sai na imprensa local, desde que vim morar em Santa Cruz, lá pelo ano 2000. Obvimante, lia as crônicas do Guido Kuhn.

De fato, seus textos eram muito atraentes; havia um sabor agradável, dado por uma abordagem nostálgica e paroquial, falando do “nosso passado”, das “nossas coisas” e da “nossa gente” –  e aí começavam os problemas: que passado, coisas e gente eram essas?

Assim, mesmo admirando a capacidade de escrita e a sedução das palavras, não comungava com uma certa postura/concepção que emanava dos seus textos, ou seja, uma essência germanófila, aquém do que eu sempre espero de alguém que pretenda-se ou repute-se um pensador/narrador da transição dos séculos XX para o XXI, mesmo quando fala da sua aldeia, como propalava Tolstói.

Guido tem sua importância, sim, mas não pode ser louvado acriticamente, sob pena de endossarmos um discurso etnicamente apologético e excludente, calcado numa historiografia romântica, “edificante”, moralizadora e, sobretudo, definidora dos “donos do pedaço”. E nesse sentido, os romances (ou seja, as ficções) dos santa-cruzenses Wilson Muller, “Pequena História de Amor”, e de Valesca de Assis, “Valsa da Medusa”, são muito mais ricos ao falarem do passado de Santa Cruz, e, aí sim, à altura de uma proposta “tolstoiana” de “pintar (ou contar) a sua aldeia para ser universal”.

Apresentei para própria prefaciadora a minha “ressalva”. Escrevi, repetindo o argumento acima, que, “mesmo gostando de ler e achando interessante várias abordagens do Guido em suas crônicas, sempre o critiquei respeitosamente pelos seu viés germanófilo, reforçando uma historiografia e cultura santa-cruzenses por demais romantizada, apologética e calcada numa visão etnicamente subalternizadora de outros grupos formadores da grande comunidade santa-cruzense, ‘esquecendo’ que a história real começa com o povoado conhecido como Faxinal do João Faria (sesmeiro estabelecido com sua parentela, agregados e trabalhadores negros escravizados onde hoje é o centro da cidade), décadas antes da introdução (em 1849) dos sem-terra teutos (nenhum era propriamente de nacionalidade alemã nas primeiras levas, já que sequer existia o país Alemanha até 1871) no loteamento estatal (provincial) de Linha Santa Cruz (Picada Alta) – originalmente um caminho indígena e imediações de pequenos quilombos espalhados pela serra santa-cruzense”. Complementei, dizendo que “temos uma história rica, diversa, complexa que costuma ser soterrada por mitologias de quintal. Mesmo que com textos saborosos (quase sempre saudosos), considero o Guido uma espécie de ‘intelectual orgânico’ (no sentido gramsciano [Antonio Gramsci, pensador italiano]) da germanidade, para mim um flerte semiconsciente (e impontente, por seu pequeno alcance em um mundo com tantos outros atrativos, especialmente aos jovens) com ideias como o arianismo”.

Não houve resposta.

Não li o livro. Quero fazê-lo. É sempre importante organizar os trabalhos de escritores locais. Não esquecendo que Guido Kuhn, assim como Monteiro Lobato, são, sim, “homens do seu tempo”. Não necessariamente “na altura” do seu tempo – porque os tempos onde viveram estas pessoas (ao menos em parte) – já no meio ou no pós-Segunda Guerra – já exigiam posturas integradoras, de rompimento com preconceitos, abarcando a complexidade do mundo. E por isso não podem ser lidos sem se considerar limites ideológicos, de formação, que povoam suas (nossas) mentes. Lobato, por exemplo, filiava-se as concepções da eugenia, pseudociência que preconizava a “purificação da humanidade pelo seleção de raças” (brancas, é claro!) e expressou seu preconceito em várias partes de suas obras (inclusive as infantis, como Caçadas de Pedrinho) e em escritos não-literários, como cartas a amigos.

Todos nós dificilmente escapamos das ideologias dos nossos tempos, que nos moldam. Por isso, não dá para endossar e, até, endeusar (ou idealizar) o que é obra humana. Por mais querido que possa ser, Guido e seus escritos não fogem de uma visão de mundo longe de ser aberta, abarcando a complexidade do mundo em que vivemos e da própria existência humana. Em Santa Cruz do Sul, não somou para a construção e valorização da pluralidade étnica e uma historiografia local mais realística (menos apologética) e abrangente; pelo contrário, postulou, direta ou indiretamente, por uma germanidade local exclusivista e idealizada. É a minha opinião.

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