Seguem dois textos e complementos que redigi a partir da leitura de
Memórias de Luis Panke, editado em 2005 pela Edunisc.
Acabei por usar bastante o livro
História da Alimentação no Brasil, do estudioso brasileiro Luis da Camara Cascudo, entre outras referências e menções.
TEXTO 1
O feijão e o sonho em Rio PardinhoHá muitíssimas coisas interessantes no livro Memórias de Luis Panke, editado em 2005 pela Edunisc, traduzido do alemão (ou um dialeto, possivelmente) por Irma Lau e Eddhite Nuse, com apresentação do Prof. Olgário Vogt. Nascido em meados do século XIX, filho direto de emigrados da atual região da Alemanha, chegados a Rio Pardinho em 1853. Panke findou a narração de suas lembranças, reflexões, convicções e aconselhamentos – me parece que é assim que se estrutura o texto – em 1951, mesmo ano em que veio a falecer. Agricultor e empreendedor, foi um homem formado num luteranismo rígido, com laivos de teólogo cristão diletante e deslumbramentos místicos cheios de emotividade.
De seu livro, de agradável leitura, quase um romance, depreende-se vários detalhes sobre as vivências dos imigrantes e descendentes, e da formação da comunidade, fruto de uma complexa interação entre planos de colonização dos governos brasileiro – imperial, provincial e municipal (Rio Pardo, diga-se) – e da situação da população norte-européia, enfrentando uma pobreza derivada da concentração de terras, desemprego e abusos de leis ditadas pela elite político-econômica.
Diferente das narrações apologéticas, Luis Panke revela que, embora a grande solidariedade e esforço coletivo pelo bem comum, havia conflitos quase indissolúveis no seio da comunidade de teuto-descendentes, caso da escola em Rio Pardinho baixo, quando da transferência de um professor: o memorialista escreve que “essa briga – que ia se agravando e dividiu até o coro da igreja – deixou cicatrizes; a comunidade nunca mais voltou a ser como antigamente.”
O contato com a Alemanha, através do fluxo de pastores vindos da Europa, também é digno de um maior aprofundamento, a partir das informações dadas pelo autor; indica um vínculo persistente com a “pátria alemã”, incluindo os períodos dos conflitos mundiais. Panke fala, até, da prisão de um pastor durante o “tumulto da guerra”, referindo-se a Segunda Guerra Mundial – quando, por um lado, havia nas comunidades uma propaganda hitlerista notória e, por outro, arbitrariedades cretinas contra os teuto-descendentes.
Também as canalhices de alguns sacerdotes não escapam do relato, caso, em 1921, de um pastor, que foi pego furtando direto da “caixinha de contribuições para ajudar os pobres”...
A paulatina destruição da floresta, incluindo sua flora e fauna exuberantes – onças, macacos, aves diversas, raposas, veados, javalis (que andavam em bandos), etc. – se pode acompanhar pelos escritos de Luis Panke, entre outros processos históricos que acontecem a partir da instalação dos colonos na região até o início dos anos de 1950 – mencionados às vezes muito rapidamente e também nas entrelinhas, exigindo do leitor uma atenção específica e conexões com informações prévias sobre a história regional e mundial.
Entretanto, o que mais me chamou a atenção foi a alimentação com feijão, sustentáculo para os imigrantes. Com certeza, o gênero fundamental nos primeiros anos de assentamento nos lotes, misturado ao toucinho e, também, à valiosa farinha de mandioca – itens fornecidos na provisão subsidiada pela administração pública provincial.
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Em suas memórias (p. 55) publicadas pela Edunisc (2005), Luis Panke narra que já em Porto Alegre, na “Casa dos Imigrantes”, onde seu avô, tio e pai – entre outros vários recém-emigrados com destino a Rio Pardinho – receberam panelas, baldes, canecas e os mantimentos mencionados, “uma pessoa fora indicada para mostrar-lhes tudo e explicar como cozinhar o feijão preto”, que poderia ser servido como pirão (mais “mole” ou mais “duro”, servindo-se, até, em “fatias”) e sopa, modificando-se a “tecnologia” de cozimento e uma pequena variação dos ingredientes (caso do uso da carne-seca, o charque gaúcho).
Perceba-se, assim, que a subsistência dos nossos colonizadores teutônicos era baseada numa dieta e culinária tipicamente brasileiras, caboclas, miscigenadas, derivadas de plantas indígenas – o feijão e a mandioca – e com agregações das formas e meios de alimentação e cozimentos dos lusos e afros-descendentes no Brasil. Pensando-se nas abóboras, batatas, milhos, amendoins, na erva-mate, que foram também se incorporando na dieta dos imigrantes e sua prole já nascida brasileira (podemos somar a isso as ervas e outros vegetais medicinais nativos, sem falar no tabaco), vemos o quanto se deve a outros povos a sobrevivência e desenvolvimento das comunidades germânicas, com sua gente chegada em meados do século XIX – e que, de resto, nunca foram permanentemente isoladas e sem a presença de membros de outras origens geográficas e culturais. E também o quanto, já pela alimentação, aqueles que, simplificadamente, chamamos de “alemães” se tornaram brasileiros desde o princípio – embora cisões, por conta de ideologias, interesses econômicos e políticos expressados por discriminações étnico-raciais, nunca tenham cessado por completo.
A própria agricultura na colônia começou pelo plantio da leguminosa logo após o primeiro desmatamento (p. 89) – usando-se (ou abusando-se) novamente de uma herança indígena, a coivara –, bem como foi “moeda de troca” dos colonos com o centro comercial da época, a cidade de Rio Pardo. Mesmo não tento um valor elevado, trocava-se um saco de feijão por um indispensável chapéu de palha, como observa Panke (p. 94).
“O feijão e o sonho”, título deste artigo, “emprestado” da famosa obra de Orígenes Lessa, quer falar da significativa “combinação” de uma planta indígena e a esperança de uma vida próspera, feliz, mais livre para os pobres emigrados; a fonte protéica do dia-a-dia e produto dos primevos comércios – tanto para os que aqui estavam há centenas (ou milhares, no caso dos silvícolas) como aos recém-chegados. Enfim, o grão tão característico e popular, em sua simplicidade e polivalência – como nos fala o genial folclorista Luis da Camara Cascudo na sua monumental História da alimentação no Brasil (editoras Itatiaia e da USP, 1983) –, possibilitou a fixação e o desenvolvimento do colono teutônico, assim como, anteriormente, possibilitou aos índios horticultores, os colonos lusitanos, os negros (em seus quilombos, inclusive nos sertões de todo o Vale do Rio Pardo) e outros grupos.
Podemos dizer que a substancial vagem dos ancestrais indígenas, criada como cultivo alimentar através de milhares de anos na América, foi fonte de energia para o trabalho e crescimento de Rio Pardinho e de tantas outras comunidades. Entretanto, os tributos à planta e ao povo ameríndio (entre outros), mesmo no “Dia do Colono”, é praticamente inexistente em Santa Cruz e região – o que se configura como um “esquecimento” lamentável, para se dizer o mínimo.
TEXTO 2
Nas memórias de Panke, outras imagens da saga dos colonos
Parece-me que há uma imagem bastante nebulosa a respeito da chegada, ou melhor dizendo, a respeito da introdução (porque se trata disso, de um projeto prévio de governos, agenciadores, loteadores de terras, entre outros) dos emigrados de regiões da atual Alemanha (e outros países) aqui em Santa Cruz do Sul e adjacências. Um certo viés historiográfico desenvolveu uma espécie de lenda sobre os nossos parentes germânicos desembarcados em Rio Pardo a partir de 1849 – após um périplo que começava às vezes em confins miseráveis da Europa central, exigindo, além de uma cavalar dose de desespero e, em igual medida, perseverança para lograr toda a sorte de dificuldades, incluindo a burocracia para transpor o que se configurava uma miríade de reinos, ducados, cidades livres, enfim, regiões que, na época – antes de 1871 –, não estavam unificadas nacionalmente pela mão de ferro prussiana (o que vale dizer, a rigor, que muitos dos nossos longínquos parentes germânicos nunca foram oficialmente cidadãos alemães).
E para desmistificar a história, uma obra que, bem analisada, acaba por ser deveras interessante é a já comentada Memórias de Luis Panke, publicada pela Edunisc em 2005, traduzida por Irma Lau e Edhite Nuse. Na narração, vemos o presidente da Câmara de Vereadores de Rio Pardo, que fazia às vezes de prefeito, recebendo e tomando ele próprio às providências para o deslocamento da nova leva de colonos recém-aportados na cidade e que partiriam a seguir para Linha Rio Pardinho. Panke, filho de imigrantes de 1853, diz que seus antepassados “Foram saudados sinceramente e o governante afirmou que foi demarcada bastante terra para eles e que certamente todos ficariam satisfeitos. Em seguida ele os levou a um grande armazém, onde teriam de guardar as coisas e permanecer por enquanto” (p. 67 e 68), complementando que “as coisas mais necessárias já estavam disponíveis e os mantimentos para cada família estavam sendo separados com muito cuidado, para que nada faltasse e que ninguém fosse esquecido.”
É também através desse presidente que ficam sabendo que “uma tropa de burros transportaria toda a bagagem dos colonizadores” (p. 69). Um tropeiro, com seus ajudantes, foi contratado – às expensas da administração, é claro – para levá-los aos lotes. Teriam que arrumar seus pertences em cestos, que se acomodavam no lombo dos animais de transporte. Os preparativos seguiram até à noite e, ainda pela manhã, tropeiros e colonos terminam as arrumações e, enfim partem.
Após as despedidas ao mandatário municipal e ao “simpático homem da venda”, fornecedor dos víveres e utensílios, “O madrinheiro tomou a ponta da caravana – é um menino sobre uma pequena égua, que tem um sininho no pescoço, tinindo com cada movimento. Atrás dele, iam todas as bestas de carga, seguidas pelos viajantes... a pé. Por último, vinha o senhor da tropa, sentado sobre um cavalo grande e forte e que cuidava da fileira em sua frente.” Já existia uma trilha a ser percorrida, iniciada, muito provavelmente, décadas ou séculos antes por índios. Após um dia inteiro de caminhada, exaustos, dormem, para retomar a jornada cedo da manhã. Nesse segundo dia, enfim, avistam casas de telhado de palha – “era o ponto final: Santa Cruz”, diz Panke (p. 71).
Nem tão final assim... Do povoado – o Faxinal do João Faria, primeiro núcleo santa-cruzense, onde já estavam instalados familiares de Faria, agregados, escravos e outros arranchados –, teriam que ser levados até seus lotes, previamente demarcados, através da picada principal já aberta – trabalho realizado, frise-se, por técnicos e outros trabalhadores pagos com recursos públicos, além de evidenciar-se a participação da mão-de-obra escrava. “Ao longo do caminho nosso grupo recebeu saudações, mas os tropeiros sempre apressavam o grupo dizendo: ‘Depois vocês terão bastante tempo para conversar.’” Luis Panke em suas memórias (Edunisc, 2005) diz que, quando a última família foi deixada no lote destinado, os homens que lhes guiavam desde Rio Pardo, saudaram com um “‘Deus vos acuda’, montando seu animais e indo embora” (p.72). Com certeza, dias depois, voltariam com um novo grupo de colonos.
“Todos calados, um perto do outro, juntos de suas trouxas, cujo conteúdo foi ganho de presente, pisaram com os pés em sua própria terra, o maior presente que receberam. Esse pedaço de terra era deles, era sua propriedade no meio da floresta densa e enorme”, que não tardaria a ser derrubada e, seguindo técnicas desenvolvidas há séculos por indígenas, cultivar o feijão, primeiro alimento e “moeda de troca” – além do tabaco, outra planta típica dos silvícolas americanos, que acabaria desencadeando um ciclo de expansão econômica de enorme vigor na região.
Assim é que, nas linhas e entrelinhas dessas Memórias de Luis Panke, cheias de possibilidades de análise, fica exposto a complexa teia de acontecimentos e a contribuição de inúmeros fatores e gentes no assentamento dos colonos teutos, cuja honra venerável não precisa descambar para uma ideologia de população vitimizada por um Brasil padrasto. Não chegam feitos deuses nórdicos, e, sim, quase todos, como parcelas da massa de deserdados europeus do século XIX, contando com subsídios estatais brasileiros diretos e indiretos. Se houve injustiças e frustrações de promessas e até perseguição eventual, também não faltaram atos de boa vontade e uma paulatina integração – mesmo à revelia de intencionalidades, como alude Jean Roche em seu A Colonização Alemã e o Rio Grande do Sul, publicado em 1969 –, forjando esta brasilidade sul-riograndense onde, em meio a uma tremenda churrascada, há alguém brindando aos convivas com um esfuziante “Prosit, gauderiada!” (Obs.: E não seriam os colonos germânicos no Brasil uns “desgarrados do pago”? Uns verdadeiros gaudérios, no sentido de estarem aqui fugindo do tacão de patrões e leis que lhe tolhiam a existência em paz e dignidade?)
Comentários complementares e derivações:
***A edição que li da obra O feijão e o sonho, de Origens Lessa, foi publicado pela editora Ática em 1981, dentro da Série Vaga-Lume, dirigida a adolescentes e jovens – ficando famosa, porque todas as escolas dispunham em suas bibliotecas (Menino de asas, Cem noites tapuias, Éramos seis, O escaravelho do diabo, Spharion, etc.) e eram “recomendados” pelos professores, suponho, pela proposta de oferecer uma “literatura moderna, para o jovem de hoje (anos 80!)”. Só vim a ler agora, em abril de 2006. Gostei bastante, mas duvido que gostasse em 1981. Fala das agruras de uma família onde a mulher dona de casa frustrada desespera-se com “o feijão de cada dia” que o marido, sempre aluado em literaturas, não consegue prover minimamente. O “feijão” é o pé no chão, a necessidade básica, a preocupação primeira da mulher, Maria Clara, “materialista”, convencional; o “sonho” é o mundo fantasioso, escapista, “transcendental” onde vive o inadaptado marido, Campos Lara, o poeta de apelido Juca.
***No História da alimentação no Brasil, de Luis da Camara Cascudo, publicado em 1983 pela Itatiaia e Editora da USP, fala-se do feijão. Há toda uma parte dedicada ao assunto no capítulo Elementos básicos (que inicia na página 489 – segundo volume):
“(...) As variedades de feijão, nos vários espécimes de leguminosas papilionáceas, tinham entre os indígenas a designação genérica de cumandá (...). O sabor capitoso dos feijões brasileiros conquistou o paladar português. (...) O feijão, disponibilidade ativa e prestante, de cultura facílima, tão cômoda (...) brotando ao redor das casas, impunha-se ap passadio que as povoações transformavam, fixando o indígena nas labutas diárias junto ao colonizador [luso] e sem tempo útil para colheitas distantes de outras plantas de sua tradicional ementa [a dieta portuguesa]. O feijão seria tão fixador, no plano geográfico, quanto a mandioca (...). O brasileiro, filho de portugueses, ameríndios e africanos, foi o consumidor-propagandista do feijão. Os pais tiveram uso, intermitente e acidental, valorizado, ampliado, enobrecido no nível do costume, pelo filho. (...) O plantio do feijão acompanhou o ‘sitiante’ que tomava posse das sesmarias setecentistas nos sertões do Nordeste. Levava um alimento todo-ano, dispensando a vigilância dispendiosa de tempo para sua obtenção. (...)”
Além do feijão, a farinha de mandioca foi fundamental no Brasil, já muito antes da chegada dos Panke em Rio Pardinho, que se serviram dos dois, junto com o toicinho e o sal, para sustentá-lhes nos primeiros tempos – mas que se mantém no cardápio da “colônia” até hoje. Diz Câmara Cascudo:
“Poderíamos dizer que o binômio feijão-e-farinha estava governando o cardápio brasileiro desde a primeira metade do século XVII (1600 – p. 497).”
“Todos os naturalistas estrangeiros que percorreram o Brasil desde o princípio do século XIX mencionam o feijão como essencial, típico, apresentado, diariamente, no Sul, no Centro, no Nordeste. O século XIX revela que o ecúmeno feijoeiro se alargara, tornando indispensável, acompanhando o desenvolvimento da população, já um prato nacional, inseparável da farinha, inevitável em todas as mesas.” (p. 500)
E foi assim também em Rio Pardinho!
***Sobre o chimarrão, ao falar sobre influências na alimentação brasileira dos imigrantes alemães, Câmara Cascudo surpreende-se com a adoção apaixonada pela bebida por parte dos teutos no sul do Brasil. Ele cita uma passagem do médico e estudioso alemão, antes comentando que “Contra toda a lógica formal [dos costumes germânicos], o mate, o chimarrão, mereceu um hino de simpatia calorosa de [Robert] Ave-Lallemant [que escreveu Viagem ao sul do Brasil no ano de 1858, tendo passado, inclusive, por Santa Cruz, sendo sua obra um subsidiado e inspirado um personagem do livro A valsa da medusa, de Valesca de Assis – esposa do romancista Assis Brasil]:
Tudo o que em nossa civilização se compreende como amor, estima e sacrifício; tudo o que é elevado e profundo e bom impulso da alma humana, do coração, tudo está entretecido e entrelaçado com o ato de preparar o mate, servi-lo e tomá-lo em comum... É o mate a saudação da chegada, o símbolo da hospitalidade, o sinal da reconciliação”.
***Camara Cascudo ainda comenta que, diferente de italianos, os alemães no Brasil “Ficaram, percentagem notável, mais depressa brasileiros na alimentação que os italianos ou sírio-libaneses. As várias cozinhas existentes na Alemanha, da Renânia à Prússia Oriental, da Baviera às terras bálticas, não ofereceram uma frente única defensiva ao amavio aculturativo, poderoso no fator da necessidade. (...)”.
Citando Emílio Willemns, Camara Cascudo faz observar: “‘Quanto às bebidas, a cachaça acrescentou-se, por toda parte [nas localidades de assentamentos teutônicos], à cerveja que cada região produz [além do chimarrão, como já mencionado].’”
***Numa indicação do intercruzamento étnico-cultural antiguíssimo e permanente no desenvolvimento da humanidade – e que não poderia ser de outra forma em Rio Pardinho! –, Camara Cascudo, ao falar da presença e importância do toucinho (p. 239) “nas comidas negras” brasileiras “desde o princípio do século XIX mas certamente vulgarizado na centúria anterior, foi uma influência portuguesa”. Mas complementa a informação: “[O toucinho] Era uma constante na comida lusitana do século XVI, vinda imemorialmente dos povos germânicos [vejam só!!] povoadores da península ibérica (...)”. O toicinho português do século XIX, que foi outrora herança dos povos germânicos antes do século XVI, volta (ou continua), através de brasileiros, a ser dado como sustentáculo alimentar aos imigrantes teutos em Santa Cruz do Sul a partir de 1849.
***Noutra indicação de “compartilhamento inter-étnico-cultural”, assim como os imigrantes em Rio Pardinho, os “imigrantes forçados” da África também tiveram na mandioca (e depois também no feijão) o seus sustento alimentar: “Antes de pisar terra do Brasil vinham comendo mandioca”, diz Cascudo (p. 105).
“Há quase cinco séculos a farinha continua mantendo o prestígio no crédito popular. (...) é a camada primitiva, o basalto fundamental na alimentação brasileira”, comida de todos os sertanejos – não excluindo os de Rio Pardinho!
Com farinha se faz “o legítimo pirão brasileiro”, com suas “nuances”, dependendo do acesso momentâneo aos ingredientes. Luis Panke conta (p. 74) que seus familiares, recém descarregados nos lotes, aprenderam, com colonos teutos chegados poucos anos antes à região de Rio Pardinho, a fazer um pirão muito simples e rápido feito de toicinho refogado, sal e água ferventes, onde se deitava a farinha de mandioca – todos ingredientes ganhos do governo provincial, como rancho básicos aos emigrados. “Técnica portuguesa com material brasileiro, o pirão é uma obra-prima nacional”, empolga-se Camara Cascudo (p.120).
***O “Dia do Colono”, 25 de julho, com já mencionado em outros artigos, não é o “Dia do Agricultor”. A data se refere ao início da colonização germânica no RS, em 1824, na região de São Leopoldo. Mas já é tradicional, em municípios como Santa Cruz do Sul e Venâncio Aires, comemorar-se e associar-se a data ao trabalhador rural – como se os agricultores fossem “apenas” os teutos e seus descendentes, “esquecendo-se” de que na região sempre houve – até bem antes da introdução dos emigrados germânicos – agricultores (e agricultoras!) com outras origens e referências étnicas.
***A coivara é, em verdade, uma fase de um tecnologia e conhecimento agrícolas muito mais vasto e complexo por parte dos povos indígenas. Em artigo publicado na Revista Geográfica Universal (Bloch Editores), de maio de 1988 (nº 162), a antropóloga Berta G. Ribeiro, falando sobre a cultura da tribo Kuikúro, que vivem no Parque Indígena do Xingu, desde a escolha da área a ser preparada para o plantio, seguido um conhecimento impressionante da composição vegetal, do solo e geografia locais, até o processo minucioso da derrubada de árvores e queima, de forma a ter o máximo aproveitamento da área e minimizando agressões à floresta. Berta diz, por exemplo, que “os Kuikúro sabem quando é chegada a hora da queima pela aparição da constelação do Pato do lado oriental do céu, antes do raiar do Sol. E ainda pela posta de ovos de tracajá [...]”. Ou seja, existe aí o saber astronômico e da correlação entre os fenômenos do ecossistema. “As cinzas aumentam imediatamente a fertilidade do solo, em alguns casos dobrando a quantidade de sais solúveis e triplicando ou quadruplicando seu teor de potássio, cálcio, magnésio, etc.” Ao final do artigo, a antropóloga diz que é “demonstrado a complexidade do saber indígena no que se refere a conhecimentos pedológicos, climáticos e à genética das plantas.”
***Uso cerimonial de fermentados alcoólicos pelos índios (noutro momento, já mencionei o tabaco, outra planta que pode ser arrolada na etnobotânica americana, descoberta, cultivada, beneficiada – secagem das folhas, manufatura de “charutos”, desenvolvimento de cachimbos e outros meios de uso – por povos “pré-colombianos”, de uso cerimonial e medicinal, apropriada pelos europeus e transformada em mercadoria e produto de uso vulgar, generalizado e compulsivo):
Na obra do genial folclorista Luis da Camara Cascudo, História da Alimentação no Brasil, documento dos mais vastos e interessantes sobre a cultura, história e sociedade brasileiras, há um capítulo (p. 143) tratando das bebidas usadas em rituais festivos pelos índios brasileiros. Cascudo cita o alemão Hans Staden, que conviveu com nativos por volta de 1554:
“As mulheres é que fazem também as bebidas. Tomam as raízes de mandioca, que deitam a ferver em grandes potes, e quando bem fervidas, tiram-nas e passam para outras vasilhas ou potes, onde deixam esfriar um pouco. Então as moças assentam-se ao pé a mastigarem as raízes, e o que fica mastigado é posto numa vasilha à parte. Uma vez mastigadas todas essas raízes fervidas, tornam a pôr a massa mascada nos potes que então enchem de d’água e misturam muito bem, deixando tudo ferver de novo. Há então umas vasilhas especiais, que estão enterradas até o meio e que eles empregam, como nós os tonéis para o vinho e cerveja. Aí despejam tudo re tampam bem; começa a bebida a fermentar e torna-se forte. Assim fica durante dois dias, depois de que, bebem e ficam bêbados [tal expressão talvez não seja a mais adequada, devida a sua carga pejorativa]. É densa e deve ser nutritiva.”
Além da mandioca, também se usava o milho e outras plantas e partes de vegetais, como ananás e raízes de certa pimenteira, todas obedecendo ao processo básico – usado por diversos grupos aborígenes do mundo todo, do Peru à Austrália – de desencadear a fermentação do produto pela mastigação: “Na diástase da saliva a ptialina transforma o amidos das raízes e dos frutos em maltose e dextrina, provocando a sacarificação, resultante dos ácidos orgânicos sobre os açúcares.”
A repugnância e paulatino desuso do processo de fabricação dessas bebidas pela mastigação. Cascudo acredita “que à nossa vã filosofia ‘científica’ escapam razões milenares e secretas de certos atos da [assim chamada] vida primitiva. E mesmo da vida popular contemporânea. (...) A saliva está neste plano, mágico, histórico, universal no espaço e no tempo.”
Outra observação fundamental de Cascudo: “Beber por desfastio, divertimento, desejo íntimo, não existia e quase não existe entre os aborígenes. Indígena isolado, bêbado, é contágio de ‘branco’. Bebida é sempre função grupal, solenidade com motivação indispensável.”
As “caiuagens” [consumo coletivo do fermentado] não era algo do dia-a-dia, mas fazia parte da rotina social dos grupos. A bebida “era cerimônia especial e distinta”. Durante esse período, os indígenas abstinham-se de alimentos. Nas refeições cotidianas, quando se sente necessidade, bebe-se água pura, diz Cascudo.
Cascudo, ainda neste capítulo, fala do caápi, um cipó – ou melhor, a “infusão da casca previamente socada num pilão especial, mal diluída em um pouco de água” – que “produz um sumo amargo, servido depois das amplas bebidas coletivas, promovendo sonhos, excitações, semidelírios, no alto do rio Negro e mais freqüentemente no Uaupés. (...) O uso do caápi parece ter sido influência incaica, onde dizem ayauasca e lluasca.”
***Sobre a feijoada, J. A. Pinheiro Machado, em sua crônica Desilusão na Panela, publicada em Zero Hora de 19/09/2008 (p. 2), diz que, ao contrário do que costumamos pensar, este prato típico brasileiro não tem origem no nosso país, mas no norte de Portugal, se espalhando pelas colônias lusitanas pelo mundo, sendo também “prato nacional” em países como o Timor Leste, na Ásia.
Escreve Pinheiro Machado: “A feijoada nasceu do hábito português de colocar carnes para cozinhar junto com o feijão. A inspiração é nitidamente européia, do cassoulet francês, que talvez esteja na origem dos cozidos portugueses. A praticidade da mistura, com ingredientes fáceis de estocar, conservar e transportar – e também simples de preparar – estimulou a propagação da feijoada pelas colônias portuguesas, ganhando adaptações no Brasil, em Moçambique, Goa, Macau, Timor Leste e Cabo Verde. As variações dessa culinária comum foram espalhadas pelos navios lusitanos, que durante quatro séculos permutaram receitas e ingredientes entre colônias, como lembra a antropóloga americana Cherie Hamilton.”
De novo, através do feijão, dos seus cozidos, nos unimos a África (e Ásia) lusófona, também demonstrando a complexidade, as ramificações, a múltiplas imbricações étnico-culturais das e nas comunidades, caso de Rio Pardinho – onde europeus-do-norte, no processo da imigração/colonização, acabam comungando com histórias, tradições, hábitos diversos.