15 de out. de 2008

Além do Loiro Imigrante: História, Identidade Étnica e Exclusão Social na Região de Santa Cruz do Sul (segmentos de um polígrafo)

Na passagem dos 130 anos de Santa Cruz do Sul (28/09/2008), o COMPIR (Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial) promoveu, durante a reunião extraordinária do dia 29/09/2008, um debate problematizando certas perspectivas históricas locais. Na ocasião, além da colaboração excelente de outros conselheiros e participantes, apresentei alguns dados retirados de pequenos textos "ativistas" que escrevi a partir de 2001 até 2005 para jornais, buscando ressaltar a diversidade étnica do município desde os seus primórdios: lusos, negros, índios, mestiços, italianos, poloneses etc. Tais textos foram juntados num polígrafo que dei o título de "Além do Loiro Imigrante: História, Identidade Étnica e Exclusão Social na Região de Santa Cruz do Sul". Uma parte desse material segue abaixo. Outras partes, posto numa outra hora.

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Os primeiros povoadores de Santa Cruz

Os primeiros povoadores da região de Santa Cruz do Sul, os índios, foram objeto de discussão durante o III Encontro de Estudos e Debates Étnico-Culturais, que ocorreu no dia 22 de novembro passado na sala 101 da Unisc. O evento buscou promover um maior conhecimento das problemáticas que atingem esse segmento étnico historicamente vilipendiado. Os palestrantes reafirmaram que a discriminação sofrida pelos índios está ligada a um modo de viver e compreender a vida que foge ao padrão dito “civilizado”, de origem européia. A conseqüência é que os “donos da terra” hoje vivem literalmente à margem – na margem de estradas e sob condições precárias.

Estudos apontam que há cerca de 10 mil anos atrás chegaram no Vale do Rio Pardo os primeiros grupos indígenas. Através do desenvolvimento de técnicas próprias, sobreviveram pela caça, pesca, coleta de produtos florestais e, mais tarde, agricultura. Várias outros agrupamentos, com conhecimentos, tecnologias e organização social diferenciadas, se sucederam ao longo do tempo na região. Centenas de sítios e achados arqueológicos demonstram tal desenrolar. E até hoje índios de diversas procedências transitam e mesmo residem na periferia das cidades ou em localidades interioranas.

Prova disso foi a presença e o relato no supracitado encontro da índia santa-cruzense Maria Antônia Soares, que atualmente reside em Estrela, numa comunidade com cerca de vinte famílias. Os seus antepassados ocupavam áreas nas imediações do hoje Parque da Gruta. Maria Antônia conta que seus pais, avós, bisavós e ela própria percorriam com desenvoltura as matas remanescentes, conhecendo em detalhes regiões como Linha Pinheiral. Sem posse legal de terra alguma, pressionados e na busca de melhores condições de vida, eles migraram para o Vale do Taquari.

O professor e arqueólogo Pedro Mentz Ribeiro, autor do livro Pré-história do Vale do Rio Pardo, há muitos anos chama a atenção para a importância da cultura indígena. Ele diz que Santa Cruz do Sul tem numa planta autóctone, cultivada e utilizada antes da chegada dos europeus, a base da economia: o fumo. Ribeiro também lembra de outros cultivares milenares característicos dos índios da região, como o feijão, milho, abóbora, aipim, batata-doce etc. Ressalta ainda que no processo de miscigenação, muitos santa-cruzenses têm grande possibilidade de apresentarem “boa parcela de sangue indígena”.

Resgatar a contribuição e refletir sobre as peculiaridades dos povos indígenas em Santa Cruz do Sul e região, ultrapassando o senso comum de que “aqui não tem índio” – mesmo que sejam em número relativamente pequeno ou itinerantes ou migrantes –, pode colaborar para o enriquecimento da história da comunidade. Contemplando a diversidade étnica na formação do município, aumentamos as chances para uma cultura de respeito concreto à diversidade.


A presença italiana em Santa Cruz do Sul

Muito interessante à iniciativa de pessoas vinculadas à descendência dos imigrantes italianos em organizar-se em Santa Cruz do Sul. É um passo a mais para deixar à mostra a diversidade étnica e cultural que compõe o município desde os seus primórdios.

Isso também se justifica na medida que a presença dos ítalos em Santa Cruz do Sul não é recente – ao contrário do que muita gente ainda pensa. Aliás, há núcleos de colonização muito fortes, caso do antigo distrito de Gramado Xavier, colonizado a partir dos anos 30 do século passado, conforme informa Armindo Muller em seu Dicionário Histórico e Geográfico da Região de Santa Cruz do Sul (publicado pela Edunisc em 1999). Entre as primeiras famílias, Müller cita as de João Karal, Antônio e Pedro Ferrari, Fernando Pozzebon, Tomazzi, Legramanti e Berté.

A denominação Italienberg – Morro dos Italianos –, antiga Linha Alto Trombudo, localidade outrora pertencente a Santa Cruz do Sul, onde se estabeleceram gente com o sobrenome Durante, entre outros, demonstra que “os italianos não chegaram ontem” ao município. Cerro do Guzzo, topônimo que faz menção a uma família de origem italiana em Gramado Xavier (até poucos anos atrás pertencente a Santa Cruz do Sul), Colônia Picoli, em Sinimbu (distrito santa-cruzense até 1991), são outras de várias referências que comprovam a efetiva participação ítala no desenvolvimento do município e região há muitos anos. Também a freqüência desses sobrenomes supracitados em santa-cruzenses natos podem estar evidenciando o processo de migração dos descendentes desta gente ligada à descendência italiana para todo o município.

Com certeza, caso haja uma pesquisa mais detida, muitos outros dados aparecerão para deixar evidente que a pluralidade étnica e de procedências geográficas – que inclui, sem dúvida, os ítalo-brasileiros e a Itália – é uma característica que merece maior consideração quando contamos a história e homenageamos os grupos e personalidades formadoras da comunidade de Santa Cruz do Sul ao longo da sua história.


Trabalhadores negros na história de Santa Cruz do Sul

Santa Cruz do Sul, lá por 1857, possuía diversos trabalhadores e trabalhadoras escravizados. Pelo menos 21 são relacionados oficialmente pelo então diretor da colônia João Buff, oito mulheres e 13 homens – número considerável de indivíduos em uma população ainda diminuta e rarefeita. Os dados estão no livro “Os Colonos Alemães e a Fumicultura” do professor Jorge Luiz da Cunha, publicado em 1991 pela Livraria e Editora da Fisc.

Um dos “proprietários” desta gente superexplorada foi o imigrante inglês chamado Guilherme Lewis, o primeiro a edificar sua residência na então nascente cidade, recentemente delineada pelo Capitão Tenente d’Armada Francisco Cândido de Castro Menezes. Lewis, casado com a famosa Dona Carlota, de abastada família de origem lusitana, mantinha “seus negros” em atividade numa olaria próxima ao povoado. Considerando que esse inglês arrematou a construção do primeiro templo católico da comunidade, erguido em frente a atual catedral, podemos fazer algumas ligações, concluindo que muito provavelmente tal obra foi edificada com tijolos manufaturados com o concurso do trabalho de africanos ou afro-brasileiros que habitavam a Santa Cruz daquela época. Seguindo no raciocínio, também é possível depreender que várias outras obras ergueram-se com esses tijolos, em especial a referida casa do empreiteiro de origem inglesa.

Já em torno de 1853, conforme o professor Hardy Martin em seu livro “Santa Cruz do Sul – de Colônia a Freguesia”, publicado em 1979 pela Associação Pró-Ensino em Santa Cruz do Sul (APESC), temos a notícia da presença de um “criolo” (denominação dada ao negros cativos nascidos no Brasil) chamado Januário, escravo de Joaquina Cardoso, nos trabalhos buscando a navegabilidade do Rio Pardinho, formando uma equipe onde estavam também três alemães e mais dois naturais do Estado de São Paulo.

Outro registro muito interessante na história de Santa Cruz do Sul é uma fotografia datada de 1909, tirada durante a inauguração do ramal ferroviário da cidade, reproduzida no livro “Recortes do Passado de Santa Cruz do Sul”, coletânea de textos do mesmo Hardy Martim, editada pela Edunisc em 1999. Há pelo menos 20 negros aparecendo entre um número total de cerca de 150 pessoas. Os afros são facilmente distinguidos na imagem por suas feições e tom da pele. Notável também é que muitos daqueles negros empunham ferramentas, como pás, provavelmente usadas na abertura dos caminhos dos trilhos e construção da primeira e única estação ferroviária santa-cruzense, realizada durante a gestão do intendente Adalberto Pita Pinheiro.

Até mesmo quilombos – ou seja, agrupamentos de trabalhadores/as de origem africana rebelados/as contra a escravidão – são citados na bibliografia que fala de Santa Cruz do Sul. Conforme a obra supracitada do professor Cunha, em 1863 o diretor da colônia Carlos Schwerin revela em um ofício que encontrou durante a realização de trabalhos ao norte das Linhas Ferraz e São João “os vestígios que existem por dentro destes matos um quilombo numeroso”, acrescentando na sua missiva que a “destruição (do quilombo) é tanto necessária, que a colonização de Santa Cruz há de se estender por este lado”. É a “negrada” atrapalhando o plano desenvolvimentista e “branqueador” dos governos da província gaúcha e do império brasileiro nos “cafundós” do Vale do Rio Pardo.

Infelizmente, faltam pesquisas originais e específicas que adentrem nesta questão da participação de outros grupos étnicos e personalidades “não-alemãs” na conformação de Santa Cruz do Sul, em especial do povo negro. Embora consideráveis, os registros são esparsos, ainda sem sistematização. Trata-se de resgatar a complexidade histórica da comunidade, cuja simplificação e parcialismo podem derivar para entendimentos que, além de historicamente equivocados, são potencialmente geradores de posições racialmente preconceituosas e socialmente desmobilizadoras – fenômenos às vezes imperceptíveis a um olhar onde o sentimentalismo, o senso comum e o descompromisso com as camadas populacionais excluídas se interpõe à análise ampla e racional das informações, procurando aprofundar-se na complexa dinâmica das identidades sociais.

Descendentes de alemães proprietários de escravos no Vale do Rio Pardo
Conforme Aristides Carlos Rodrigues, autor do livro Candelária, Sua Gente e Sua História, editado em 1993 pela Gazeta do Sul S.A., o município vizinho de Santa Cruz do Sul, nas primeiras décadas da colonização alemã na região do Vale do Rio Pardo, possuía muitos escravos. Ele observa que "Não só os luso-brasileiros os possuíam. As leis número 143 e 183, de 27 de julho de 1848 e 13 de outubro de 1850, respectivamente, proibiam os colonos alemães de possuírem escravos. Essa proibição, logicamente, não era extensiva aos seus descendentes nascidos aqui [no Brasil], dado sua condição de brasileiros." Na verdade, a mencionada lei de 1850 fala na proibição da “introdução” de escravos nas colônias destinadas à colonização, não somente restringindo-se aos alemães. De qualquer forma, havia na legislação muitas exceções, além dos “jeitinhos” para manter e mesmo “adquirir” trabalhadores cativos nos territórios destinados à colonização a partir de meados do século XIX.

Rodrigues diz adiante em sua obra que "João Kochenborger [um dos primeiros colonizadores de origem alemã de Candelária, responsável pela construção do famoso aqueoduto do município] comprou, em 26 de julho de 1867, do fazendeiro Estácio José Francisco Pessoa, os escravos de nome João e Felipe, com, mais ou menos, 20 e 31 anos de idade, respectivamente. Pagou por ambos a quantia de 2 contos e 400 mil réis. A 17 de agosto do ano seguinte, comprou, de Luiz Machado Teixeira, outro escravo que, também, se chamava João. Pagou por esse 1 conto e 200 mil réis. Além dos que citamos, possuía outros, pois, certa ocasião, ele vendeu, a seu sogro, João Bappen, um escravo de nome Antonio, com 14 anos de idade. Seu genro Felipe Graeff [também um dos pioneiros germânicos em Candelária, filho do imigrante alemão Henrique Jácob Graeff] possuía 3 escravos, os quais havia comprado de Vasco Xavier da Cunha."

Um escravo valia muito, "mais do que quatro colônias e meia de terras otimamente localizadas", ressalta o autor do livro sobre Candelária, citando o caso do referido João Kochenberger. Enquanto as tais terras tinham sido compradas por esse bem sucedido teuto-brasileiro por um conto e doze mil e quinhentos réis, dois escravos foram adquiridos por dois contos e quatrocentos mil réis. Podemos, assim, raciocinar que a exploração do trabalho dos negros nesta tradicional região de colonização alemã era considerável e muito lucrativa. Mesmo com um custo que suplantava o de uma grande extensão territorial, parece que "valia à pena” investir na mão-de-obra escrava.

Outra relação que também podemos fazer é o de que tal "fenômeno", ou seja, a posse de escravos por descendentes de alemães, também ocorreu, no mesmo período que em Candelária (ao redor de 1867), em outros municípios, caso de Santa Cruz do Sul e Venâncio Aires. Essa conjectura merece mais pesquisas, o que poderia colaborar para uma visão ampliada da história e da construção da identidade social dessas cidades e do Vale do Rio Pardo como um todo.


1891: quase 13% dos santa-cruzenses são "de cor"

O jornal Kolonie de 21 de fevereiro de 1891, conforme a dissertação de mestrado de Silvana Krause (UFRGS, 1991), informa que, num total de 15.571 habitantes, há em Santa Cruz do Sul 1.987 pessoas "de cor", ou seja, negros e, provavelmente, mestiços diversos com pele escura. Isso significa 12,7% da população santa-cruzense daquela época.

O dado é muito significativo. Ainda mais quando consideramos que esse número de indivíduos com raízes africanas, talvez também indígenas, foi contabilizado a menos de três anos da chamada abolição da escravatura (13 de maio de 1888). Assim, podemos raciocinar que diversos, senão grande parte, quiçá a totalidade dos “de cor” eram trabalhadores saídos recentemente do cativeiro, desempenhando tarefas que lhes possibilitava a sobrevivência em meio (ou em paralelo) – entre outros grupos étnicos – a imigrantes alemães e seus descendentes. E mais: sem usufruir de benesse alguma dos governos, largados “a Deus dará”, carregando as chagas de centenas de anos da absurda exploração e desumanidade.

Portanto, mais um registro que corrobora na afirmação de que Santa Cruz do Sul teve negros e “outros elementos de cor” em seus primórdios. Aliás, isso era um fato antes mesmo da introdução das primeiras famílias chegadas da Alemanha (e de outros países e Estados brasileiros), conforme anota Armindo Müller no seu Dicionário Histórico e Geográfico da Região de Santa Cruz do Sul (Edunisc, 1999). Referindo-se ao Faxinal do João Faria, antiga denominação da cidade, Müller diz que "O avô de João Faria (...) foi o primeiro morador de Santa Cruz [fixado nas imediações da atual catedral católica da cidade]. Para resguardar-se das investidas dos índios, fez cercar sua casa pelos ranchos de seus numerosos escravos", complementando que se tratava de um sobrado de madeira onde o próprio João Faria também residiu, servindo, ainda, como alojamento a colonos imigrantes.

Temos, assim, somado a "bravura alemã", o sofrimento e luta do povo negro – além de tantas outras contribuições de diversos grupos e personalidades não-germânicas (caso gritante dos de origem lusa) – na conformação da comunidade santa-cruzense. É preciso resgatar esses fatos e focos históricos para construirmos um município que cada vez mais se afaste de compreensões parciais e mesmo completamente erradas do seu desenvolvimento e da sua identidade social – fatores esses que podem fomentar o preconceito e absurdas visões de supremacia raciais.


Negros vieram antes que os alemães em Santa Cruz

Passado o 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, acho que ainda cabe um comentário quanto à forma como se aborda a questão da população de origem africana em nível local.

Diferente do que se costuma pensar, dizer e registrar, a comunidade afro-descendente há muito tempo tem raízes em Santa Cruz do Sul. Antes mesmo da introdução dos primeiros imigrantes germânicos, em 1849, negros e negras estavam no território do município – em número que não pode ser menosprezado – como trabalhadores cativos, vinculados a famílias com origem lusa, além de, provavelmente, diversos libertos e até aquilombados. Basta citar a informação trazida pelo pesquisador Armindo Müller no seu Dicionário Histórico e Geográfico da Região de Santa Cruz do Sul (Edunisc, 1999). Referindo-se ao Faxinal do João Faria, antiga denominação da cidade, Müller diz que "O avô de João Faria foi o primeiro morador de Santa Cruz. Para resguardar-se das investidas dos índios, fez cercar sua casa (um sobrado de madeira, que chegou a servir de alojamento a imigrantes) pelos ranchos de seus numerosos escravos”. Numerosos escravos!

É por isso que soam injustas e falhas as manchetes de jornal do tipo “Negros JÁ criaram raízes em Santa Cruz do Sul”. Ora, dão a entender que a inserção de pessoas com descendência africana é algo recente no município. Trata-se, ao meu ver, da reprodução – mesmo que inconsciente – de um processo de “invisibilização” das pessoas não-brancas em geral e sem teuto-descendência mais especificamente.

Os afro-descendentes estão marginalizados até nos livros de história produzidos no em Santa Cruz. No máximo, lê-se algumas linhas “de passagem”. Falta muita pesquisa. Falta escrever uma obra didática com uma perspectiva histórico-social etnicamente plural e crítica da formação da sociedade santa-cruzense. O foco tem se restringido, quase sempre, aos alemães – que, de fato, são fundamentais nesse processo.

Mas nunca estiveram “sozinhos” no papel de “civilizadores” na região (e, portanto, de extinção das organizações sociais e culturas silvícolas, só para citar outro grupo comumente marginalizado), que envolve um contexto muito amplo de relações e colaborações de inúmeras ordens.

A simplificação em um mito fundador exclusivo – o do “colono imigrante” –, além de limitado e fantasioso, presta-se a entendimentos equivocados da constituição de Santa Cruz do Sul, sendo elemento considerável na naturalização da discriminação racial no seio da comunidade. Que as atividades em torno do dia 20 de novembro, morte de Zumbi dos Palmares, possam fazer um contraponto sério às distorções e desvalorizações históricas.


Negros abrindo caminhos à colonização alemã

Já foi dito várias vezes (mas ainda não suficientemente) que, na história do Vale do Rio Pardo, em especial no tocante a municípios como Venâncio Aires e Santa Cruz do Sul, se tem menosprezado a colaboração de grupos e pessoas de determinadas etnias, caso flagrante do povo negro. Existe de fato uma centralização em torno da colonização germânica (em parte compreensível pelo volume de imigrantes), que acaba por monopolizar as pesquisas, os relatos e homenagens históricas.

Esses dias, acompanhando a publicação de artigos na imprensa regional sobre o surgimento da Colônia de Santa Emília, em Venâncio Aires, notei, com entusiasmo, que o pesquisador Cláudio Carlos Fröhlich traz à tona algo muito interessante, mesmo que em nível de hipótese (mas muitíssimo factível). Trata-se do trabalho de escravos na abertura dos primeiros caminhos que deram acesso, posteriormente, ao assentamento de imigrantes alemães (entre outros) em diversas localidades, caso da referida comunidade venâncio-airense. Sem esse trabalho pioneiro de, provavelmente, centenas ou milhares de descendentes africanos por anos a fio (considerando que deve ter continuado mesmo após a chamada abolição da escravatura), a ocupação das terras nas densas florestas do vale seria ainda mais difícil, senão impossível.

Portanto, quando louvamos os colonizadores que chegaram aqui a partir de meados do século 19, jamais deveríamos esquecer que o “nosso” (bem entre aspas!) território começa a ser estabelecido, através das demarcações, abertura de acessos e locais de residência e trabalho, antes da chegada desse contingente vindo do que hoje é a Alemanha e arredores. Sem falar nos lusos, há os índios – a população autóctone que aos poucos foi afastada e quase exterminada – e os negros, cujos antepassados que cruzaram o oceano (conseguindo sobreviver às piores condições) chegaram como “imigrantes forçados”. E, mesmo que menos expressivos numericamente, têm seu papel fundamental na constituição da sociedade, da cultura e da economia da região.

Uma certa germanidade apologética, que se verifica em municípios como Venâncio Aires e Santa Cruz do Sul, urge ser, repito, “equalizada”, incorporando-se a trajetória dos teutos no Vale do Rio Pardo num contexto maior, mais complexo, de múltiplas colaborações e relações interétnicas. Assim poderemos produzir uma compreensão e ambiente sociais cada vez mais – na concretude cotidiana (sem mais referências débeis e demagógicas sobre “outras raças”) – superadores de preconceitos.


Santa Cruz deve muito aos índios

O sustentáculo da economia santa-cruzense, que impulsionou o meio rural e urbano do município desde as primeiras levas de imigrantes alemães, é, sem dúvida, o fumo. Mas pouca gente lembra de que tal planta está intimamente ligada aos índios, que há milênios já o cultivavam. Muito mais tarde, e depois de muitas voltas na história, o tabaco veio a ser a cultura que deu impulso à lavoura, à indústria e ao comércio de Santa Cruz do Sul.

Estudos apontam que há cerca de 10 mil anos atrás chegaram no Vale do Rio Pardo os primeiros grupos indígenas. Através do desenvolvimento de técnicas próprias, sobreviveram pela caça, pesca, coleta de produtos florestais e, mais tarde, agricultura. Vários outros agrupamentos, com conhecimentos, tecnologias e organização social diferenciadas, se sucederam ao longo do tempo na região. Centenas de sítios e achados arqueológicos, além de documentos históricos, demonstram tal desenrolar. E até hoje índios e descendentes de diversas procedências transitam e mesmo residem na periferia da cidade ou em localidades interioranas.

Um testemunho desta presença contemporânea foi o relato – durante um debate com membros do Conselho Estadual dos Povos Indígenas (Cepi-RS) que ocorreu na Unisc em 2001 - de uma índia nascida em Santa Cruz do Sul, chamada Maria Antônia Soares, que então residia na cidade de Estrela, numa comunidade com cerca de vinte famílias indígenas. Os seus antepassados ocupavam áreas nas imediações do hoje Parque da Gruta. Maria Antônia relatou que seus pais, avós, bisavós e ela própria percorriam com desenvoltura as matas remanescentes, conhecendo em detalhes regiões como Linha Pinheiral. Sem posse legal de terra alguma, pressionados e na busca de melhores condições de vida, eles migraram para o Vale do Taquari e espalharam por outras diversas localidades do Estado.

O professor e arqueólogo Pedro Mentz Ribeiro, autor do livro Pré-história do Vale do Rio Pardo, há muitos anos chama a atenção para a importância da cultura autóctone na região. Ele reforça esta idéia de que Santa Cruz do Sul tem numa planta nativa, cultivada e utilizada antes da chegada dos europeus, a base da economia, ou seja, o fumo. Ribeiro também lembra de outros cultivares milenares característicos dos índios da região, como o feijão, milho, abóbora, aipim, batata-doce etc. Ressalta ainda que no processo de miscigenação, muitos santa-cruzenses têm grande possibilidade de apresentarem “boa parcela de sangue indígena”.

Falando em tabaco, outro dado trazido pelo professor Ribeiro – ao apresentar suas pesquisas sobre a Aldeia de São Nicolau, em Rio Pardo – diz que tal comunidade chegou a juntar centenas de famílias indígenas trazidas da região dos Sete Povos das Missões. Entre outras instruções das autoridades da época (o documento referido é de 1769) para os aldeados, havia a de plantarem fumo. Ou seja, por instrução já do século XVIII, pelo menos 80 anos antes da chegada do primeiro grupo de imigrantes alemães, há referências sobre o plantio de fumo por parte de indígenas. Portanto, os pioneiros da fumicultura, antes e depois da chegada e dominação dos portugueses no Vale do Rio Pardo, são os índios.

Por essas e outras tantas razões, deveríamos refletir sobre nossa dívida com os povos indígenas. Antes de migalhas e favores, antes de “enxotá-los” ou isola-los de alguma maneira do nosso convívio, podemos reconhecer o “direito ancestral” destes povos circularem (pelo menos isso!) nas terras que paulatinamente foram apossadas por “estrangeiros”, doadas, compradas e vendidas dentro da lógica do “branco”, que tratava (ainda trata!) o índio com um ser inferior e, portanto, passível de expropriação, inclusive da sua dignidade pessoal e cultural.

***No Guia Histórico de Rio Pardo, de Dante de Laytano, em sua edição de 1979, o autor fala de um francês que vinha para a região de Rio Pardo para a compra de fumo. Isso aconteceu em torno do ano de 1803, ou seja, 46 (quarenta e seis) anos antes da introdução de imigrantes germânicos nas bandas de Santa Cruz do Sul. É mais uma referência de o cultivo e o comércio de fumo já está estabelecido na região, e não surgiu a partir da colonização a partir de meados do século XIX.


Índios e negros: “Fora daqui!”

Há um episódio muito interessante e revelador anotado pelo professor Jorge Cunha em seu livro Os colonos alemães e a fumicultura (Fisc, 1991). Em nota de rodapé, lê-se o seguinte: “Com a valorização das terras em torno da colônia de Santa Cruz [RS], os matos e ervais pertencentes aos índios da aldeia de São Nicolau de Rio Pardo, com cerca de duas mil braças quadradas (968 hectares), são considerados devolutos e loteados, passando a fazer parte da colônia de Monte Alverne”. Isso se passa em torno de 1859, dez anos após a introdução da primeira leva de imigrantes germânicos em Linha Santa Cruz. No avanço da colonização, as áreas de extrativismo pertencentes a indígenas da região são usurpadas. A elite econômica e política impõem os seus interesses e concepções de “desenvolvimento regional”.

Outro fato da maior significância – e que também costuma ser lido como um “mero detalhe” – diz respeito à existência de negros aquilombados na região, que, por aqueles tempos, estava sendo ocupada por famílias alemãs. Cunha escreve, na sua supracitada obra, que o então diretor da colônia de Santa Cruz, Carlos Schwerin, efetuando medidas na serra ao norte de Linha Ferraz e São João, comunica, em 1863, ao inspetor geral das colônias, que ele havia encontrado vestígios de que “existem por dentro destes matos um quilombo numeroso, cuja destruição é tanto necessário, [já] que a colonização de Santa Cruz [com imigrantes germânicos] há de se estender por este lado até chegar em Cima da Serra”. Mais uma vez os grupos que “teimam” em sobreviver autonomamente, longe da inaudita exploração, mantendo uma cultura própria, não-proto-européia, são perseguidos como um câncer a ser extirpado, pois “atravancam a civilização”...

A conclusão do professor, fazendo uma citação do relatório do então presidente da província, Jeronymo Francisco Coelho, de 15 de dezembro de 1856, é de que “fica claro que a colonização com imigrantes brancos e europeus significa o desejo subjacente de modernização calcada sobre o abandono e a destruição dos elementos característicos de uma forma de produção que, dados os ‘compromissos de dever e de honra nacional, os tratados, os sentimentos de humanidade, e a reprovação geral dos povos cultos’, deve desaparecer para sempre”. Se o preço é próprio extermínio dos “povos não-cultos”, paga-se sem maiores remorsos – tudo em nome do progresso!

Incrivelmente, idéias arrogantes e discriminatórias, como as manifestadas no século retrasado por esse, então, presidente da província sul-riograndense, prosperaram e continuam, de uma maneira ou de outra, explícita ou dissimuladamente, se reproduzindo até hoje. A ignorância ou o menosprezo ou a total omissão de acontecimentos – como o da expropriação dos ervais dos índios e perseguição a quilombos em meio às, outrora, densas florestas do Vale do Rio Pardo – quando se conta, de diversas formas, a história santa-cruzense, é uma pequena amostra do descaso.

Penso que está na hora de levantarmos o alvo tapete cerimonial forjado em hinos, monumentos, livros e outros meios mitificadores, superando, assim, como diz o historiador Mário Maestri, “as narrativas vitimárias e prometéicas das leituras étnico-apologéticas da colonização”, e começar a vasculhar com mais afinco o que está soterrado por décadas de preconceitos bem pouco admitidos, construindo uma perspectiva mais ampla, multiculturalista, para a formação da comunidade local e regional.


Historiografia santa-cruzense e germanismo

Ao comentar a tese de doutorado de Ieda Gutfreind, Historiografia rio-grandense, transposta em livro pela Editora da UFRGS, a professora Helga Piccolo, nas “orelhas” da segunda edição (1998), diz que “A obra mostra como a seleção de informações necessárias à construção do objeto de pesquisa [a história do Rio Grande do Sul] foi feita conforme os objetivos/interesses dos historiadores analisados [entre eles, Moysés Vellinho, Souza Doca e Othelo Rosa]. Assim, o caráter ideológico da produção do conhecimento histórico é desvelado”. Logo a seguir, Piccolo complementa o seu comentário, referindo-se ao lusitanismo sectário verificado pela doutora Gutfreind: “estando ausentes das preocupações da maioria desses historiadores as correntes imigratórias não-lusitanas, a identidade sul-rio-grandense que eles construíram foi excludente. A construção simbólica do Rio Grande do Sul, pela qual foram responsáveis, foi insuficiente ‘para resgatar o processo histórico gaúcho’”.

Pergunto: Isso tudo não poderia ser dito, com as devidas transposições e especificidades, em relação à história de Santa Cruz do Sul? Ao invés do lusitanismo, colocaríamos o germanismo*, como uma concepção ideológica** filtrando o olhar de diversos historiadores e outros intelectuais santa-cruzenses (leigos e acadêmicos), produzindo obras – entre livros, artigos e simbolismos diversos – que menosprezam a presença e colaboração de personalidades e grupos étnicos não-germânicos no município.

Veja-se o caso do hino de Santa Cruz do Sul. Originalmente composto em 1959 e decretado em 1963, é uma peça que, ao “contar a história santa-cruzense”, oficializa uma versão exclusivista da formação e desenvolvimento municipal. E assim também acabam servindo o feriado municipal de 25 de julho, o Monumento ao Imigrante (onde nenhuma mulher é retratada ou citada nos escritos em bronze), a Festa do Colono etc.

As razões para tanto, para forjar e manter esta “perspectiva histórica” baseada numa origem germânica quase mítica*** e um protagonismo ofuscante dos teutos ao longo do tempo, ainda estão para serem melhor pesquisadas. O que parece ocorrer é uma tentativa de legitimar pelo menos – não necessariamente nesta ordem - três coisas: (I) a procedência da temática turística utilizada (mesmo que “pasteurizada”) em eventos como a Oktoberfest, (II) o sentimento de pertencimento a uma comunidade positivamente sui generis por parte de um grande grupo de munícipes e (III) a “natural preferência e preponderância alemã” junto a mecanismos de empoderamento no município.

Hoje esta última “estratégia” já está muito fragilizada, como se percebe, por exemplo, na eleição recente e reiterada de políticos sem sobrenomes “tipicamente alemães” para cargos muito expressivos e o surgimento de movimentos que buscam trazer à tona a participação de negros, índios, italianos etc. no seio e na construção da sociedade local. Santa Cruz do Sul pode estar passando por uma crise de identidade...


1922: até na cadeia Santa Cruz mostra a sua diversidade

Um inglês, um italiano, dois russos e seis castelhanos fazem parte do quadro estatístico de presos na guarda municipal de Santa Cruz do Sul entre 1921 e 1922, totalizando, com os “nacionais”, 122 detidos. Todos estavam sob a responsabilidade do então Tenente Comandante Leonel Carlos do Prado. Tais dados fazem parte de um relatório publicado na gestão do intendente Gaspar Bartholomay, em 1922, onde constam muitas informações interessantes, fotos, pronunciamentos, tabelas etc.

Destaquei do documento histórico os 10 estrangeiros detidos na guarda municipal para induzir um raciocínio sobre a diversidade de gente que circulava e residia na região de Santa Cruz desde a fundação dos seus primeiros povoados. Se lá no começo do século XIX, com uma população que na cidade atingia um pouco mais que 14 mil “almas”, havia esses 10 que foram presos – e considerando que o encarceramento é quase sempre uma situação muito extraordinária –, pode-se imaginar a quantidade dos que estavam “soltos”, ou seja, vivendo e trabalhando na comunidade sem problemas com a polícia!

Também podemos pensar que, entre os 112 presos de nacionalidade brasileira que fazem parte da estatística da guarda municipal, havia estrangeiros já naturalizados, os de origem germânica já nascidos no Brasil, mestiços de todos os “naipes” e, provavelmente, negros. Aliás, conforme várias indicações, afro-descendentes são, na época, comuns e numericamente consideráveis ocupando cargos menos graduados nos serviços de polícia militar. Vi, por exemplo, no Museu do Colégio Mauá, uma foto da década de 30 onde aparecem homens negros na praça central fardados como guardas militares.

Essas informações – e outros tantas a serem ainda recolhidas e aprofundadas – podem reforçar a visão de que a pluralidade étnica em Santa Cruz é – e sempre foi – algo efetivo, concreto. Ocorre que, ao longo de algumas décadas, foi-se constituindo um certo “teutocentrismo” exacerbado que quase suplantou o fato de que uma multiplicidade de grupos étnicos e personalidades de várias procedências geográficas e referências culturais foram formadoras da comunidade santa-cruzense. Os alemães e descendentes – é preciso reconhecer – são fundamentais, mas não estiveram sozinhos no amplo processo histórico que definiu e define o município.


A tradição lusitana na história das ruas de Santa Cruz

Quando li aquele famigerado livro do Irton Marx, República do pampa, ri muito – mesmo que às vezes com certa nuance de amargor e tristesa – das “ingenuidades” do “nosso” futuro vereador ou, quem sabe, prefeito de Santa Cruz do Sul. Numa das ilustrações, que “provavam” as diferenças entre a “desenvolvida” Santa Cruz e a “atrasada” Rio Pardo, estava a das ruas retilíneas da “cidade germânica típica”, contra o “caos lusitano” das vias e prédios rio-pardenses. E assim se ia (e ainda se vai) o germanófilo em sua teoria tacanhamente preconceituosa e, sobretudo, equivocada em termos históricos.

Escrevi um pouco sobre isso um tempão atrás e recebi muitos “elogios” de ferrenhos defensores das teses “irton-marxistas”. Lembrei disso num fim de semana ao ler um artigo da revista Ágora (não confundir com a Agora) de janeiro de 2001, do Departamento de História e Geografia da Unisc.

O artigo é da professora de arquitetura Maria da Graça Sebbem, com o título “A corrente imigratória alemã e a formação urbana”. Após analisar as características das aldeias alemãs donde vieram os imigrantes e os assentamentos aqui no Estado, destacando Santa Cruz, Venâncio Aires, São Leopoldo, Novo Hamburgo e outros, ela conclui que “as colônias [a ocupação territorial no meio rural] alemãs do RS foram planejadas por técnicos de origem lusa, baseadas na concepção da cultura lusitana”. No último parágrafo arremata: “a forma das cidades [os assentamentos urbanos] de imigração alemã no RS herdaram poucas influências (ou nenhuma) das cidades alemãs de onde vieram os imigrantes.”

Bem, mesmo com argumentos embasados cientificamente, em pesquisas respeitáveis, isso não costuma “surtir” muitos efeitos em “fundamentalistas”... Mas dentro da minha “política pedagógica” de “água mole em pedra dura etc.”, querendo fazer valer uma visão da formação etnicamente plural de Santa Cruz e região, vou pingando meus textinhos e comentários por aí. Quem sabe, um dia, junto com o monumento ao imigrante, tenhamos as figuras de negros/as, índios/as, mestiços/as de diversos “naipes”, além de holandeses, ingleses, russos, baianos, paulistas e tanta outra gente de tantas procedências diferentes que por aqui estiveram – e cujos descendentes, mesmo que miscigenados, ainda estão.


Negros na História da organização popular nas zonas de colonização

Muito se fala na influência das organizações das comunidades dos imigrantes alemães e seus descendentes na “cultura associativista” que ainda perdura ou, pelo menos, se vislumbra em iniciativas e instituições sociais em nossa região. Mas é bastante temerário argumentar que tal conformação de relações coletivistas no campo econômico e social seja algo originado em um grupo étnico exclusivamente. O relativo isolamento dos núcleos coloniais e o atendimento deficitário ou inexistente por parte dos governos de demandas sociais – como o de escolas – já demonstram que se trata de algo – a organização associativa – provocado por inúmeros fatores, para além de alguma “determinação genética” de uma certa “raça superior”.

Podemos pensar, por exemplo, nos quilombos em meio aos grotões do Vale do Rio Pardo, mencionados por historiadores como Jorge Cunha, que, em sua obra Os colonos alemães e a fumicultura, de 1990, nos coloca que o então diretor da colônia de Santa Cruz, Carlos Schwerin, efetuando medidas na serra ao norte de Linha Ferraz e São João, comunica, em 1863, ao inspetor geral das colônias, que ele havia encontrado vestígios de que “existem por dentro destes matos um quilombo numeroso, cuja destruição é tanto necessário, [já] que a colonização de Santa Cruz há de se estender por este lado até chegar em Cima da Serra”.

Os quilombos são típicas organizações sociais de subsistência e luta do povo negro contra a opressão escravocrata – imensamente mais traumática, diga-se de passagem, do que aconteceu durante um período do Estado Novo em relação a alemães e italianos. Para destruir os agrupamentos dos afro-descendentes, as elites não pouparam esforços. O capitão-do-mato era uma figura emblemática da repressão aos quilombolas. De novo, Santa Cruz do Sul não deixou de ter pelo menos um desses terríveis “caçadores de escravos fujões”. De alcunha Gaiola, de nome Joaquim, como atesta José Bittencourt de Menezes em sua obra Município de Santa Cruz, de 1914, o antigo residente do Faxinal Velho (hoje bairro da cidade) recebeu, inclusive, além de “condecorações pelo serviço prestado”, um terreno na quadra “M” da então ainda nascente sede urbana santa-cruzense planejada e executada pelo governo provincial.

Em Venâncio Aires, que guarda muitas semelhanças com a “Capital do Fumo” (e o tabaco é uma planta cujos mais longínquos agricultores são índios, inclusive aqui no Vale do Rio Pardo) em sua conformação histórica e mesmo étnica – perceptível até nos templos católicos principais (em ambos os casos a “velha igreja” nos moldes tipicamente luso-brasileiros é substituída pelo neogótico “modelo germânico”) e no traçado ortogonal característico do urbanismo colonial português, herdado pelos governos do Brasil. Pois na “Capital Nacional do Chimarrão” – outra referência a um produto (a erva-mate) e hábito indígenas ancestrais – a maior festividade religiosa da cidade e da região tem íntimas ligações com a organização associativa da população negra.

Conforme dados da própria paróquia e do historiador venancioairense Jair Pereira, em 25 de janeiro de1880, 12 escravos e quatro “pessoas livres” (muito provavelmente ex-cativos com origens africanas) registram a Irmandade de São Sebatião. Para além do aspecto religioso – e mesmo de uma devoção sincrética, preservando elementos de atávicos cultos da África –, as irmandades eram grupos de ajuda mútua, podendo contar com sistemas de poupança, recolhimento de contribuições, provendo auxílios financeiros em diversas situações, como na própria compra da carta de alforria. Para enfrentar a hostilidade e precariedade sociais a que estavam submetidos, o congregacionismo do povo negro foi um meio importante de minimizar as dificuldades existentes num mundo de profundo racismo, que, infelizmente, não se dissipou até hoje.

A irmandade de Venâncio Aires (1880) e o quilombo de Santa Cruz (1863) são exemplos – entre vários outros (poderíamos falar da Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, funcionando já antes de 1774, primórdios do que seria a “Tranqueira Invicta”, centro histórico da região) – no Vale do Rio Pardo de organizações essencialmente populares, comunitárias e negras em plena zona de assentamento de imigrantes alemães. Em muitos casos, como foi referido, tais coletivos antecederam e coexistiram na colonização germânica efetivada a partir de 1849. Por isso, é preciso considerar que, no “lastro cultural” associativista regional, mesmo quando se tratam de municípios com forte influência teutônica, está agregado, mesmo que em menor parte, mesmo que dissolvido e invisibilizado, a organização, a mobilização, a resistência, o trabalho e a história dos africanos e seus descendentes.


1874: mais de 60% da população de Monte Alverne não é alemã****

Monte Alverne foi uma colônia provincial (ou seja, estatal) ligada inicialmente ao município de Taquari. O historiador Dante de Laytano, em notas do seu livro Origem da propriedade privada no Rio Grande do Sul (Martins Livreiro, 1983), citando o “Relatório de colonização” de 1875, diz que a Câmara Municipal de Taquari, além de auxiliar o diretor da colônia em “acabar com as contendas existentes entre os colonos por causa dos caminhos” – uma alusão à situação nem sempre harmônica e de congraçamento dos assentados –, a corporação taquariense, na época com funções administrativas (similares a uma prefeitura de hoje), também estava empenhada no “melhoramento das estradas, mandando ultimamente construir, as expensas suas, três pontilhões na estrada que vai da colônia [de Monte Alverne] ao porto de embarque no rio Taquari”, indicando que as subvenções governamentais contaram, sim, para a efetivação do desenvolvimento da comunidade, não estando os colonos num total isolamento e desamparo por parte do poder público, como às vezes se dá a entender, sempre reforçando uma idéia de vitimização exacerbada dos imigrantes*.

Mas, nesse pequeno fragmento da obra de Laytano, ainda se referindo ao citado relatório de 1875, chama a atenção, em especial, que, no ano anterior, 1874, a população de Monte Alverne era composta de “592 indivíduos, sendo nacionais 273, alemães 227, austríacos 71, suíços 7, holandeses 14”. Transformando estes dados em percentagens, temos que 46,1% dos monte-alvernenses da época são brasileiros – o que deve incluir, além de possíveis teuto-descendentes naturalizados, vindos de colônias mais antigas, caso de São Leopoldo, também pessoas luso-descendentes, miscigenados de várias matrizes étnico-raciais, além (não se pode duvidar) de afro-descendentes, talvez, mesmo, trabalhadores escravizados, ordinariamente encontrados à época em Santa Cruz, Candelária, Estrela, Venâncio Aires etc.

A população de Monte Alverne se complementa com 38,3% alemães. Sem dúvida é um número bastante expressivo, mas que não deveria suplantar em termos de consideração, em primeiro lugar, o de “nacionais” (praticamente a metade), e, em segundo, os 15,4% de imigrantes de outros países da Europa, ou seja: 11,9% de austríacos, 2,36% de holandeses e 1,18% de suíços. Toda esta gente**, seus descendentes, devem ter constituído família, expandindo-se com uma parentela a cada geração mais numerosa, mesmo que “misturada” com pessoas oriundas de outros grupos, “cozinhando” o hibridismo do qual fala o professor Mozart Linhares.

Eis, num censo de 1874, em plena colônia de imigrantes – mas também de migrantes (o número de nacionais é a prova de que nem só estrangeiros foram assentados na região) –, a exposição, por números significativos, de uma diversidade que alguns ainda tentam desconsiderar. Monte Alverne é um exemplo da complexida histórica e da múltipla origem dos elementos humanos, compondo um painel de intensos câmbios culturais, resultando numa comunidade sui generis, muito longe de uma identidade que se possa referenciar – a não ser de forma artificial – numa única nação estrangeira, que, no começo da colonização, sequer existia como país***.

*No “Relatório do Vice-Presidente da Província”, de 1861, também já se vê o empenho e os recursos públicos implicados já na chegada e transporte dos imigrantes a serem assentados em Monte Alverne. Estradas são abertas para a expansão da colônia “para o lado de Taquari [Venâncio Aires]”, sob as expensas governamentais, encarregando-se (ou seja, pagando-se) para tal o “major de engenheiros Cândido Januário Passos, em 27 do corrente ano”. O mesmo vice-presidente também diz no relatório ter tomado providência para que os colonos desembarquem no “porto [na beira do rio Taquari, provavelmente na região de Vila Mariante] da fazenda do capitão João Francisco Fernandes, e dali por terra à moradia do cidadão José Joaquim da Cruz, distante da colônia [de Monte Alverne] uma légua”, complementanto que havia dado providências para que “naquele ponto serem recebidos os colonos, proporcionando-lhes alimento e transportes, visto ter a câmara municipal de Taquari mandado melhorar o pique [a via de acesso] existente para o trânsito a cavalo, da moradia do cidadão Cruz à mesma colônia de Monte Alverne”. É importante lembrar que a colônia é dirigida por um “funcionário público” – portanto, pago com recursos governamentais –, que, no caso, em 1861, era o agrimensor Carlos Sceverin.

**Sem falar nos indígenas de inúmeras procedências que estiveram estabelecidos na região desde, pelo menos, cinco mil anos atrás. Em terras que seriam e são hoje Monte Alverne, conforme o professor Jorge Cunha, houve, inclusive, até os primeiros anos dos assentamentos dos colonos europeus a partir de 1849, uma área de quase 1000 hectares pertencentes aos índios de origem missioneira da aldeia rio-pardense de São Nicolau. Os indígenas exploravam os ervais, tirando daí a sua subsistência. A ganância de alguns “bem relacionados”, com a valorização da área, acarretou a espoliação destas terras, que, a princípio, foram designadas aos indígenas pelo próprio governo provincial.

***No “Relatório do Presidente da Província”, de 1859, ou seja, apenas uma década após o assentamento dos primeiros agricultores de origem germânica na região de Santa Cruz do Sul, é mencionada a composição populacional da colônia: “Considerando os colonos em relação à sua naturalidade, vemos: nacionais 664; alemães 2.040; argentinos 1; dinamarqueses 2; flamengos 6 [provavelmente, refere-se a holandeses]; franceses 6; portugueses 4.” Ou seja, mais de 25% da população santa-cruzense da época não é natural da Alemanha (melhor dizendo, do que veio, mais tarde, a se configurar como o país Alemanha). Novamente, ponderamos que entre os 664 nacionais, pode haver teuto-descendentes e outros migrantes de várias regiões da província e do império. O que ressaltamos é a diversidade de procedências das pessoas, sendo, no mínimo, uma ingênua ignorância pensar-se que houve uma completa homogeneidade “racial”, étnica e cultural na época da colonização. Em cada comunidade, produz-se uma síntese a partir de diversas “tradições” trazidas e presentes. A “oktoberfestização” do passado santa-cruzense, pasteurizando a diversidade e complexidade socioculturais, é uma invenção muito recente.

****A rigor, não havia “alemães, porque, como se disse, não havia o país Alemanha durante boa parte do período da saída dos emigrantes que vieram aqui para o Rio Grande do Sul no século XIX. Considere-se, também, que a unificação comandada pela Prússia não foi algo que se deu de súbito e tranqüilamente. Foi um processo onde não faltaram conflitos.


Começo da colonização alemã no RS: lá estão os negros trabalhando

Não raro somos acometidos de uma espécie de cegueira. Acredito que ela seja derivada de condicionamentos mentais que, entre outras coisas, fazem desaparecer em nossa “visão” certos “detalhes”. Um exemplo: Há anos conheço um quadro famoso que reproduz a chegada dos primeiros imigrantes germânicos em São Leopoldo, “berço da colonização alemã no Rio Grande do Sul”. A pintura é de Ernst Zeuner, artista gráfico alemão radicado em Porto Alegre nos anos de 1950. Vi esta imagem reproduzida em muitos lugares. O último deles foi em um cartão postal, que traz a versão da artista Marga Glauche, que recentemente expôs esta sua obra na mostra alusiva aos 180 anos da imigração alemã, realizada aqui em Santa Cruz do Sul em torno da 20ª Oktoberfest.

De súbito, quase com espanto, numa espécie de “iluminação”, revela-se na paisagem que vejo naquele cartão postal um homem negro, de camisa branca e calças marrom, manobrando um barco com uma grande vara. Ele parece ter conduzido aquela gente postadas na margem do Rio dos Sinos, com toda as suas bagagens. Dou-me conta, por minhas leituras anteriores, que tal pessoa, mesmo considerando-a ficcionalmente, seria uma das centenas de escravos a serviço do governo ou de particulares que moravam e labutavam na região à época*. Possivelmente estava na província gaúcha há muito tempo, e agora lhe coube a tarefa de transportar aquelas famílias que recentemente atravessaram o Atlântico.

Embora em primeiro plano, este homem de pele escura e traços inconfundíveis (incluindo a vestimenta) dados pelo pintor, identificando-o, assim, como um negro, é quase um adereço para contar a história daqueles brancos, muito brancos, que agora, em sua desesperada jornada por uma vida longe da miséria européia, e contando com os recursos públicos do Império do Brasil**, estavam sendo trazido à antiga propriedade governamental tocada por escravos – a Real (depois Imperial) Feitoria do Linho Cânhamo. Aquele trabalhador – sim, ele está trabalhando! – é quase uma árvore na paisagem retratada; um elemento cenográfico da “grande saga” protagonizada por um outro grupo de humanos, que receberam uma dignidade (mesmo que justa) tão acachapante, que toldou nossos olhos para esse contingente étnico que ao longo da história (e na consideração historiográfica derivada) foram tratados como bestas, como coisas, como inferiores, como se não fossem humanos ou uma “sub-raça” – ideologia que, infelizmente, não se dissipou e ainda determina a estruturação social em todo o Brasil.

Foi assim que tive “provas”, por experiência própria, de como age a invisibilidade. Num quadro! Numa pintura! Num “retrato”! Mesmo que explícitas, certas informações são contornadas ou sub-projetadas, de forma que “desapareçam” por força de uma focalização tão intensa em determinados pontos, que chegam a ofuscar outros vários. A obra de Zeuner, relida por Glauche, é uma “admissão” da presença negra nas zonas de colonização alemã. Os ditos “pioneiros” da colonização, na verdade chegam em 1824 (e depois permanecem convivendo até hoje) em São Leopoldo conduzidos por gente de um povo cujos sofrimentos, cujo suor, cuja importância e nobreza não foram destruídas, apesar de muitíssimos esforços em contrário.

*Conforme Aurélio Porto, no livro O trabalho alemão no Rio Grande do Sul, no inventário dos bens Feitoria – extinta em 31 de março de 1824, através de uma portaria do governo imperial, que anunciava ao mesmo tempo a criação do assentamento de colonos germânicos naquela localidade –, constam 321 escravos, “que foram remetidos ao Rio de Janeiro, para onde anteriormente já haviam ido outros 334”. Ou seja, são centenas de negros e negras trabalhando sob a tutela do governo no período da chegada dos imigrantes. Soma-se a estes os escravos pertencentes a proprietários luso-descendentes estabelecidos na região, além de libertos e aquilombados. Todo esta “mão de obra”, além dos desgarrados, parece ser desconsiderada, e o trabalhador que passa a ser considerado como “verdadeiro”, como “pioneiro” é o de pele branca...

**Mesmo vendo frustrarem-se muitas promessas feita por agenciadores “oficiais”, Porto, na mesma obra já citada, afirma que os primeiros imigrantes destinados à colônia estabelecida na antiga Feitoria receberam subsídios governamentais, como o oficializado por documento de 21 de julho de 1826, onde concede-se o pagamento das passagens do navio transatlântico, auxílio diário de 160 reis e entrega gratuita 160 mil braças quadradas de terra.

***Contrariando a idéia de que os imigrantes alemães – ou melhor, de regiões que seriam a Alemanha décadas depois de 1824 – eram, mesmo que pobres e humildes, em sua totalidade pessoas “qualificadas”, “gente de bem” etc., o autor de O trabalho alemão no Rio Grande do Sul diz que Jorge Antônio de Schaefer, designado pelo governo imperial como recrutador de colonos, “fizera embarcar dezenas de criminosos, assassinos e ladrões, tirados das cadeias de Macklenburgo, que eram levados para bordo [do navio Wilhelmine, em fevereiro de 1825] ainda com as algemas nos pulsos”. Aurélio Porto cita Eduardo Teodoro Boesch, que acompanhou a travessia desta mesma leva, tendo publicado um livro em Hamburgo por volta de 1835. Boesch escreveu sobre seus próprios “compatriotas”: “Tremi ao avistar aquela gentalha rota [...] cuja atitude trazia o cunho da rudeza e da bestialidade animais. Estava bêbada a maior parte desses maltrapilhos vagabundos”.


Santa Cruz com cheiro de bacalhau já em 1854 (1ª parte)

Tempos atrás, a propósito de um debate entre amigos sobre características das cidades da região, aproveitei para mencionar uma reportagem que saiu na imprensa local em março deste ano falando sobre os 150 anos da demarcação do núcleo urbano de Santa Cruz do Sul. Como já se tornou praxe, a autoridade consultada pelos repórteres foi o arquiteto e professor Ronaldo Wink, que, de fato, tem um importante trabalho sobre o processo de urbanização no município, incluindo um ótimo livro com parte de seus estudos.

O tom – também como costumeiramente acontece neste tipo de reportagem “histórica” – era grandiloqüente e ufanista. O texto falava que "Santa Cruz já nasceu moderna", com uma "estrutura quadriculada peculiar a grandes centros urbanos", "a exemplo de cidades como Nova York e Buenos Aires". E assim vai.

Mas acontece logo adiante uma "falha na Matrix" da concepção monoétnica da história santa-cruzense: o repórter registrou que, "curiosamente" (observe-se o espanto expresso na palavra “curiosamente”), a estruturação "não era um modelo adotado na Alemanha. Lá os povoados se criavam de forma espontânea, a partir de aglomerados", finalizando que Santa Cruz foi planejada "de acordo com as normas coloniais portuguesas"...

O que não foi dito na reportagem referida é que o Faxinal do João Faria, onde hoje está a cidade, já era habitado há décadas pela parentela do sesmeiro João Faria da Rosa (de onde vem o antigo nome da hoje cidade de Santa Cruz do Sul), seus agregados e escravos, além, muito provavelmente, de foragidos, aquilombados e a “bugrada” que circulava e se assentava pelas bandas. Ou seja, não era um vazio a área de 953 hectares desapropriada, projetada como entreposto estratégico e urbanizada por conta do governo provincial. Fora os terrenos destinados a edificações e espaços públicos, centenas de lotes foram concedidos a particulares (a maioria com sobrenomes tipicamente lusos), muitos deles – e isso o repórter menciona – para colonos de origem germânica, já migrando para outro meio, e assim também usufruindo de mais uma benesse estatal (além do já recebido como subsídio direto e indireto aos assentados europeus no decorrer do século XIX).

Para reforçar o lusitanismo da formatação urbana de Santa Cruz, registre-se que os trabalhos de demarcação e documentação (mapas) da área, iniciados em novembro de 1854 são realizados pelo capitão Francisco Cândido Menezes, auxiliado por José Luís Teixeira Lima – nomes e sobrenomes que indicam sobremaneira a origem étnica dos gajos. A propósito, no livro O urbanismo Português: séculos XIII-XVIII/Portugal-Brasil (editado em Portugal) fica reforçada a evidência da inserção de Santa Cruz do Sul num projeto de urbanização/ocupação territorial de raízes lusitanas, adotado nos anos de 1700, e “herdados” pelos governos brasileiros já no período pós-colonial.


Santa Cruz com cheiro de bacalhau já em 1854 (final)

Na página 226 da obra O urbanismo Português: séculos XIII-XVIII/Portugal-Brasil é dito que “A maior parte das vilas e cidades brasileiras do século XVIII têm por base uma quadrícula ortogonal regular e organizam-se em torno de uma praça, quadrada ou rectangular, localizada centralmente. É sobre esta estrutura ortogonal e a partir da praça que se define o traçado das ruas e a estrutura dos quarteirões, também de forma quadrada ou rectangular.” Segue adiante: “A associação da formosura da cidade à regularidade do traçado [...] são expressão da influência de princípios renascentistas na concepção dos traçados destas cidades” adotados pelo governo de Portugal da época, seja na metrópole, seja em suas colônias, o que inclui o Brasil e países do continente africano.

Irton Marx em seu livro sobre a “República do Pampa” fala que a disposição do casario em Rio Pardo demonstraria, em suma, a “inferioridade da origem lusa”, em contraposição ao ordenamento de Santa Cruz, revelando assim, mais uma vez, o quanto à limitação de informações pode levar a argumentações estapafúrdias.

Mencionei tal equívoco num outro pequeno texto onde aludi que, segundo a professora de arquitetura Maria da Graça Sebbem, em seu artigo A corrente imigratória alemã e a formação urbana – após analisar as características das aldeias alemãs donde vieram os imigrantes e os assentamentos aqui no Estado, destacando Santa Cruz, Venâncio Aires, São Leopoldo, Novo Hamburgo e outros – ela conclui que “as colônias [a ocupação territorial no meio rural] alemãs do RS foram planejadas por técnicos de origem lusa, baseadas na concepção da cultura lusitana”. No último parágrafo arremata: “a forma das cidades [os assentamentos urbanos] de imigração alemã no RS herdaram poucas influências (ou nenhuma) das cidades alemãs de onde vieram os imigrantes”.

Obviamente, “Cheiro de bacalhau”, o título deste breve texto, é só para falar com bom humor da multiplicidade de influências que se consubstanciam numa comunidade. Mais que somente do chucrute, Santa Cruz do Sul é bafejada por múltiplos aromas, embora alguns teimem em sempre requentar a mesma insossa e insubstancial sopa de pacotinho com o prazo de validade há muito vencido...


Kaingang em Santa Cruz: antes, durante e depois dos imigrantes (1ª parte)

Afonso Mabilde, ou melhor, Pierre François Alphonse Booth Mabilde, nascido na Bélgica em 1802 e falecido em São Leopoldo em 1892, foi um importante administrador e engenheiro na zona de colonização alemã no Rio Grande do Sul. Atuou na instalação de vários assentamentos agrícolas de imigrantes no século XIX, incluindo o que hoje é a cidade de Vera Cruz – que, aliás, oficializou o belga, naturalizado brasileiro, como o seu fundador.

Mas o mais notável em Mabilde, sob o meu olhar, foi o seu intenso interesse em relação aos povos indígenas do Estado. Detalhou o modo de vida dos coroados, hoje conhecidos como kaingang. Mesmo repleto de etnocentrismo, próprio de um europeu do século retrasado, o conjunto de seus relatos e estudos reunidos no livro Apontamentos sobre os indígenas selvagens da nação Coroados dos matos da Província do Rio Grande Do Sul, publicado em 1983 pela Instituição Brasileira de Difusão Cultural, é de grande importância para se conhecer com maior profundidade um dos grupos silvícolas que resistiu ao seu (quase) extermínio – provocado pela ocupação avassaladora do território por parte dos “brancos”.

Baseados em uma dieta de pinhões, os coroados se notabilizavam pela excelente saúde e resistência ao frio. Mabilde conta que, em pleno inverno sul-rio-grandense, mantinham-se praticamente nus e sem sinal algum de padecimento físico.

A acuidade de sentidos (visão, em especial) e espantoso conhecimento da mata, deixavam o engenheiro e etnólogo diletante impressionadíssimo, assim como a habilidade incomparável daquela gente com os materiais florestais na produção de instrumentos como arcos e flechas perfeitos e eficientes.

A frugalidade esboçava-se não só na alimentação praticamente sem carne (inclusive de peixe) e apenas com produtos de coleta da floresta (as araucárias eram imprescindíveis a eles), mas também em suas habitações construídas com técnica suficiente apenas para atender a itinerância do modus vivendi dos coroados de então. Assim, a dominação da área justificava-se para a garantia da subsistência do grupo, que circulava por uma grande região. Tal nomadismo, observe-se, muitas vezes é alegado para negar-lhes o direito sobre terras, apelando-se para a visão européia, tida como “superior”, impondo-se despoticamente aos povos indígenas um “respeito aos valores”, a “leis” e outros códigos sociais “estrangeiros”.

Kaingang em Santa Cruz: antes, durante e depois dos imigrantes (final)

A obra do Afonso Mabilde (1802-1892) – Apontamentos sobre os indígenas selvagens da nação Coroados dos matos da Província do Rio Grande Do Sul – também é interessante para ressaltar que havia, sim, na região de Santa Cruz do Sul a presença dos “antigos kaingangs”. Uma eloqüente informação está no prefácio, onde o vetusto historiador gaúcho, Guilhermino César, diz que o engenheiro, “achando-se na região de Santa Cruz [provavelmente entre 1860 e 1870], ocupado com os trabalhos de abertura de estrada, foi [...] surpreendido por um grupo de selvagens [coroados], que o prenderam”, tendo durado “mais de dois anos o seu cativeiro”, aproveitando a situação para coligir inúmeras informações sobre a existência daquele grupo naquele tempo, e ainda resistindo ao avanço “a ferro e fogo” da colonização européia que estava em curso – empreitada iniciada já no século XVII por jesuítas espanhóis nas reduções no Vale do Rio Pardo (dispersada pelo bandeirante Raposo Tavares, preador de índios para a escravidão), proseguindo-se com a ocupação lusitana (século XVIII) acompanhada de povos e descendentes de africanos, intensificando-se a partir da introdução dos primeiros imigrantes germânicos, que chegam ao povoado do Faxinal do João Faria, futuro município de Santa Cruz, em dezembro de 1849.

Infelizmente, a dizimação da população de coroados/kaingang foi dramática. Mas elementos de sua cultura, incluindo seus conhecimentos técnicos – como pode nos fazer intuir a leitura do supracitado livro – estão incorporados quase de forma impercetível na sociedade de hoje. Mais que tudo, enquanto “brancos dominadores”, lhes “devemos” muitas reparações, em especial pela usurpação de seu território e aviltamento de suas vidas desde a chegada dos primeiros portugueses e espanhóis pela região.

Quando vemos, pelo centro da cidade de Santa Cruz do Sul, crianças, mães e outros adultos com inequívocas feições indiáticas buscando formas de sobreviver em meio a uma penúria indigna, não deveríamos, penso eu, tratá-los como “seres indesejáveis” – um tipo de incitamento cretino perpetrado seguidamente por lamentáveis neofascistas locais. Talvez muito mais “estrangeiros” sejamos nós, que até bandeiras de outros países contemporâneos (caso que acontece na Oktoberfest) ainda usamos para nos identificar num Brasil forjado na mestiçagem, mas que não se livrou da arrogância eurocêntrica e do racismo dirigido às pessoas de pele mais escura.


Nos 100 anos da Estação, lembremo-nos do trabalho negro

Como já foi amplamente divulgado, a Estação Férrea de Santa Cruz do Sul, cujo prédio ainda está erguido e abrigando o Centro Cultural Jornalista Francisco José Frantz (denominação em homenagem ao destacado intelectual e empreendedor da cidade), completará 100 anos no próximo dia 19 de novembro. Eis aí uma oportunidade excelente de, entre outras comemorações em torno da data e da importância da estação e do ramal férreos – caso da elevação à categoria de “cidade”, dada pelo então presidente da Província, Borges de Medeiros, na visita à “vila” na inauguração oficial das obras –, lembrarmos de algo pouquíssimo valorizado na história santa-cruzense: o trabalho dos negros, a sua presença e influência sociocultural e econômica nada desprezível no município e região.

Num pequeno artigo, publicado há três anos, já sublinhava que uma documentação das mais interessantes da historiografia local é uma fotografia referente ao ano de 1905, tirada no período da inauguração da estação e do ramal que estava ligando a vila à cidade de Rio Pardo, reproduzida no livro Recortes do Passado de Santa Cruz do Sul, coletânea de textos do pesquisador Hardy Martin, organizada pelo professor Olgário Vogt e publicada pela Edunisc em 1999. “Há pelo menos 20 negros aparecendo entre um número total de cerca de 150 pessoas. Notável também é que muitos daqueles negros empunham ferramentas, como pás, provavelmente usadas na abertura dos caminhos dos trilhos e construção da extinta estação de trens do município”, ressaltei naquele breve escrito.

Ou seja, os afrodescendentes são, sim, uma importante força de trabalho para Santa Cruz do Sul desde os seus primórdios urbanos. Mas antes mesmo da introdução dos imigrantes, no povoamento que se consubstanciou no Faxinal do João Faria, na abertura das primeiras estradas e picadas por onde foram conduzidos os primevos colonos alemães; do trabalho escravo de incontabilizados homens e mulheres negros explorados por vários proprietários – como indicam, por exemplo, os registros em torno de 1857 do, à época, diretor da colônia, João Buff –, além dos diversos quilombos nos recônditos do território santa-cruzense apontados nos estudos do renomado historiador Mário Maestri, são flagrantes de uma vertente étnica local quase sempre desconsiderada e pouquíssima estudada, forjando-se, assim, a invisibilidade de uma parcela importante da comunidade e subsidiando os mecanismos da odiosa e persistente discriminação racial.

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