26 de out. de 2008

Que meninas santa-cruzenses, caras-pálidas? - sobre a escolha das "soberanas da Oktoberfest"


Um jornal da cidade, em sua edição de 18 de abril passado, ou seja, na abertura de uma nota sobre a escolha das rainhas e princesas da edição 2008 da Oktoberfest – dentro de uma das páginas mais lidas da publicação diária – diz o seguinte:

“O sonho de se tornar soberana da Oktoberfest bate à porta das meninas santa-cruzenses.” A matéria seguia, detalhando e orientando as interessadas a se inscrever até às 11h30min daquela manhã. A escolha seria no já transcorrido 4 de maio, em evento especialíssimo.

De imediato me perguntei, parodiando o índio da história de Zorro [ilustração acima - divulgação]: Mas que meninas santa-cruzenses vocês estão falando, caras-pálidas? Quem são essas meninas? Todas? De verdade? Obviamente que não. Fora outras exigências gerais, de patrocínio, por exemplo, ou de padrões de beleza bem demarcados – altura e peso, entre outros – há uma barreira racial evidente.

Como reagiriam os organizadores a uma inscrição de uma candidata negra? Seria aceita com tranqüilidade, naturalidade? Não haveria celeuma algum? Antes disso – e o que me deixa doente: alguma moça afro-descendente (ou de traços indígenas ou acaboclada, como há tantas pelas nossas vilas da periferia e interior rural) se sentiria encorajada a pensar em se inscrever no concurso? Quem a apoiaria? Nem os pais teriam forças para tal....

Repito: o fato é que esse “sonho das meninas santa-cruzenses” não é para todas, não. Às negras santa-cruzense, desde pequeninas, lhes será dito que a maior festa do município, a comemoração por excelência da comunidade, que veio a substituir a Fenaf a partir de 1984 – num processo que o historiador Eric Hobsbawm poderia referir-se como exemplo de “invenção da tradição” –, que recebe consideráveis recursos da prefeitura e de outros cofres públicos, para essas meninas de pele escura e traços tipicamente afros (ou não-caucasianos), tal sonho de ser rainha ou princesa da festa não existe ou não sobrevive; é vetado desde sempre.

Mesmo que consideremos a frivolidade e fugacidade de tais papéis – o de “soberanas” de uma festa transposta artificiosamente de Munique* –, alguém já parou para pensar que tipo de dor e resignação essa impossibilidade, essa discriminação provoca (tanto mais porque está implícita e escamoteada)? Que tipo de sentimento se acumula, se reprime, se esconde e se condensa na cabeça dessas mulheres e, de modo geral, na subjetividade das milhares de pessoas negras que residem e, em considerável parte, têm seus antepassados ligados ao município, mesmo antes do início da introdução de colonos germânicos na região do Faxinal do João Faria, povoado que deu origem a cidade de Santa Cruz**?

Muitos dirão: “Mas há o Baile da Escolha da Mais Bela Negra!” Justamente o baile e outros concursos similares – e bem menos importantes em termos oficiais e de investimento de recursos públicos – são reações, mas que explicitam e mantêm o apartheid; institucionalizam o “cada macaco no seu galho”, enfim, colaboram para este racismo à brasileira ainda não vencido.


*Como já citei várias vezes [inclusive em outros textos deste blog], o santa-cruzense Flávio Kothe, professor na Universidade de Brasília, com pós-doutorado nas universidades de Heidelberg, Konstaz, Bonn e Berlim escreveu o um artigo muito interessante – Imigração e Colonização: Utopia e Identidade –, publicado na revista do Mestrado em Desenvolvimento Regional da Unisc (Redes, vol. 6, número especial, pág. 105 a 127, maio de 2001). Ele anotou o seguinte: “A maioria dos teuto-brasileiros descende de povos que vem sendo inexoravelmente extintos na Europa – pomeranos, silésios, sudetos, boêmios, lorenos, alsacianos alemães (...). No Brasil, essa consciência histórica tem sido sistematicamente reprimida, tanto pelo Estado, a escola e a Igreja, quanto pelos próprios teuto-brasileiros. Estes são levados, então, a se identificarem com a cultura dominante mais próxima, como o tipo gaúcho do sul do Jacuí, e ficam dançando fantasiados nos CTGs, usando bombacha e trovando, ou então se identificam com o estereótipo dominante do alemão, o bávaro, o tipo alemão mais reacionário, e daí celebram a Oktoberfest, usando calça curta de couro e erguendo canecões de cerveja, embora nenhum descenda de bávaros, pois não houve quase imigração de Bayern para o Brasil. Assumem como própria uma identidade e uma história alheia (...). (...) Os brasileiros descendentes de imigrantes perderam a língua, a dança, a música, o teatro, os valores, a cultura, a história, a identidade dos antepassados. Não lhes foi permitido acrescentar, praticamente, nenhuma palavra à língua falada no Brasil, nenhuma contribuição cultural relevante. No máximo, com a pax romana instituída, foi permitido aos teuto-brasileiros cultivarem a sua “Oktoberfest”, uma festa típica de Munique, de uma cultura que nada tem a ver com a de seus antepassados: eles assumem como sua identidade o estereótipo vigente e, vestidos de Lederhosen, gritando alto e levantando canecões de Bier, ostentam, em sua alienação, a caricatura de si mesmos, a vulgarização que os mostra e demonstra como vulgares. Os revolucionários de outrora se revolvem em suas tumbas, mordendo a grama pelas raízes para não gritarem o fracasso de suas esperanças, a inutilidade dos seus esforços. Como eles não têm mais cordas vocais, também nada mais se ouve, tudo se torna apenas fantasia. O vento que sopra as sombras sobre suas tumbas parece apenas aplaudir o ridículo, o fracasso que vieram a ser os seus esforços ideais.”

**Foi na sesmaria de João Faria Rosa – numa região de aldeias e circulação de vários grupos indígenas –, onde surgiu o Faxinal, a partir do assentamento de parentes, agregados e escravos desse proprietário (além de outros), dando origem mais tarde a cidade de Santa Cruz. Décadas depois, em meados do século XIX, é que se iniciaram os assentamentos de imigrantes organizados pelo governo provincial (RS) e, depois, pela iniciativa privada – todos recebendo subsídios diretos e indiretos do poder público. Milhares de pessoas, de diversas partes da Europa (ressalatndo que, em 1849, a Alemanha, como país, não existia), mas também de outros lugares – até mesmo levas de colonos do Ceará foram assentadas na região –, compuseram inúmeras comunidades, onde a diversidade étnica era bastante considerável, mas sofreu uma “homogeneização ideológica”, fruto de vários fatores, entre eles a deliberada construção de uma “identidade única” (referendados no estrangeiro) a essas localidades. Mesmo assim, povos categorizados como germânicos são os mais expressivos, mas, ao se “cruzarem” com a miríade de gentes já aqui na região e outros emigrados e seus descendentes, desenvolveram uma cultura própria, descaracterizada – numa “comemoração” como a Oktober – pela “importação” de elementos culturais descontextualizados (um exemplo: as referências à bandeira da atual Alemanha utilizadas em profusão na festa pouco têm a ver com as regiões donde partiram os primeiros emigrados germânicos para cá e com características dos cruzamentos sócio-culturais que estabeleceram uma teuto-brasilidade na região).

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