Outra faceta interessante do jornalista e escritor Fausto Wolff – para mim que gosto de estudar e refletir sobre a identidade étnica, em especial dos imigrantes alemães e negros aqui no Vale do Rio Pardo e, mais especificamente ainda, nas bandas de Santa Cruz do Sul – é a abordagem desse autor sobre esses aspectos de conformação histórica e social que tanto nos afetam e implicam, mesmo que sem nos darmos conta.
Gaúcho descendente de alemães emigrados para o Rio Grande do Sul, a família de Wolff estabeleceu-se primeiro no interior de Santo Ângelo, como indicam as suas obras e referências biográficas alheias. Com todo o “estereótipo ariano” (loiro, alto, esbelto, etc.), incluindo o nome e sobrenome, Faustino Wolffenbüttel (donde deriva o pseudônimo Fausto Wolff), viveu as realidades da colônia rural de imigrantes teutônicos no Rio Grande do Sul; a de uma pequena cidade do Estado gaúcho, a Santo Ângelo dos anos de 1940; a de uma Porto Alegre dos 50, bairros proletários, inclusive; a de um boêmio Rio de Janeiro dos 60 e, por fim, do cosmopolitismo internacional na Dinamarca e Itália dos anos 70, quando a ditadura militar engrossou no Brasil e o jovem repórter, como já notório contestador, teve que se auto-exilar para não ser preso e até morto pela aparelhagem repressiva que se instalou no Brasil até 1985.
Conforme o conto O travesti, publicado no livro O nome de Deus: 10 histórias (Bertrand Brasil, 1999), sabe-se que Wolff conhece a Alemanha por volta de 1965, através de uma estadia naquele país – passando por Munique, Colônia, Bonn, Stuttgart, Hamburgo e Berlim –, a convite de uma organização que lhe estava apresentando o sistema televiso alemão, que, à época, totalmente estatizado. O jornalista, que havia trabalhado na revista O Cruzeiro e outras publicações cariocas e na imprensa porto-alegrense, onde iniciou sua carreira, acaba não tendo as melhores impressões sobre o povo alemão na ocasião.
A certa altura, o protagonista da história, que vem a ser, ao que tudo indica, conforme estou aludindo, o próprio Wolff, faz um desabafo: “A verdade é que eu estava saturado da Alemanha e dos alemães: da pontualidade, da falta de humor, do mal disfarçado orgulho, da mal disfarçada arrogância, dos assuntos que não podiam ser discutidos, mas que estavam enganchados em qualquer pedaço de ar”.
Que assuntos tabus eram esses? Veremos...
Wolff também revela logo adiante no texto que, em provável razão do seu perfil étnico, em desacordo com a mistificação de “país mestiço de lusos, negros e índios”, tinha um sentimento de “sentir-se estrangeiro no Brasil” – “mas, certamente, na Alemanha me sentia mais estrangeiro ainda”, conclui. Quer dizer, Wolff ou/e seu personagem não consegue(m) observar e sentir essa “identidade comum e fraternal” que muitos tentam estabelecer entre descendentes de emigrados germânicos na América do Sul e a população alemã contemporânea, como se fizessem parte de uma supraterritorial “pátria comum”.
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O ponto crítico da viagem narrada por Fausto Wolf através do conto O travesti é o acontecido no trem que seguia a Berlim, quando, por desatenção e cansaço, o protagonista dessa história (um conto de evidente conteúdo autobiográfico), entra em uma cabine da primeira classe, tendo um bilhete para a segunda. Percebido o equívoco pelo fiscal do comboio, instala-se um histérico tribunal de acusações entre os passageiros que também estavam naquela cabine. “Todos berravam ao mesmo tempo. Agiam como se eu houvesse cometido um crime horrendo”. Não suportando mais a cena, Wolff dá um passo para trás, bate os calcanhares, estende a mão aberta e grita “Arbeit Macht Frei!” – “o moto irônico e cruel que os nazistas haviam colocado na entrada de todos campos de concentração”, significando “O Trabalho Liberta”. A teatralidade faz seu efeito e de imediato as pessoas se calam, talvez percebendo a sua indignada ironia, lembrando àqueles súbitos revelados celerados a soberba, “a prepotência alemã no tempo do III Reich”.
O assunto que não podia ser discutido tinha tudo a ver com esta questão envolvendo a Segunda Guerra Mundial. Wolff observa intrigado os alemães com mais de cinqüenta anos que passam a sua frente (depois de ter dado uma desastrosa entrevista a um programa cultural, onde desagradou “judeus alemães, o entrevistador” e seu cicerone na ocasião, declarando “que deveriam ter instalado o Estado de Israel no Vale do Ruhr e não na Palestina”), perguntando-se: “Mas será possível que ninguém sabia de nada?” Das câmaras de gás, do sádico assassinato de crianças e velhos, das experiências mortais com cobaias humanas, etc?
Passaram-se duas décadas desde o fim do terror inominável da “Era Hitler”, mas a Alemanha (ou parcela da sua população), naqueles meados de 1960, parecia ter recuperado – ou mantido? (ao menos em parte) – uma tacanhice que embasou um conflito estúpido onde o sangue de milhões de seres humanos não parecia ter sido suficiente para deixar ao largo idéias cretinas de superioridade.
*No romance À mão esquerda, Wolff, através, também, de personagens e situações autobiográficas – como no conto O travesti, onde a abordagem é bem mais rápida, embora muito interessante –, traça um painel onde se inserem as questões dos teuto-brasileiros – como ele mesmo se reconhece –, retrocedendo num exercício ficcional-histórico à Alemanha medieval, passando pela colonização germânica no Rio Grande do Sul a partir de 1824, até o Brasil e o mundo contemporâneos, centrado nos anos de 1950 até meados de 1990.
**Este texto foi redigido em 2006. Infelizmente, Fausto Wolff morreu há poucas semanas atrás. Perdemos um escritor, pensador e jornalista, enfim, um intelectual brasileiro dos melhores e mais engajados socialmente.
Gaúcho descendente de alemães emigrados para o Rio Grande do Sul, a família de Wolff estabeleceu-se primeiro no interior de Santo Ângelo, como indicam as suas obras e referências biográficas alheias. Com todo o “estereótipo ariano” (loiro, alto, esbelto, etc.), incluindo o nome e sobrenome, Faustino Wolffenbüttel (donde deriva o pseudônimo Fausto Wolff), viveu as realidades da colônia rural de imigrantes teutônicos no Rio Grande do Sul; a de uma pequena cidade do Estado gaúcho, a Santo Ângelo dos anos de 1940; a de uma Porto Alegre dos 50, bairros proletários, inclusive; a de um boêmio Rio de Janeiro dos 60 e, por fim, do cosmopolitismo internacional na Dinamarca e Itália dos anos 70, quando a ditadura militar engrossou no Brasil e o jovem repórter, como já notório contestador, teve que se auto-exilar para não ser preso e até morto pela aparelhagem repressiva que se instalou no Brasil até 1985.
Conforme o conto O travesti, publicado no livro O nome de Deus: 10 histórias (Bertrand Brasil, 1999), sabe-se que Wolff conhece a Alemanha por volta de 1965, através de uma estadia naquele país – passando por Munique, Colônia, Bonn, Stuttgart, Hamburgo e Berlim –, a convite de uma organização que lhe estava apresentando o sistema televiso alemão, que, à época, totalmente estatizado. O jornalista, que havia trabalhado na revista O Cruzeiro e outras publicações cariocas e na imprensa porto-alegrense, onde iniciou sua carreira, acaba não tendo as melhores impressões sobre o povo alemão na ocasião.
A certa altura, o protagonista da história, que vem a ser, ao que tudo indica, conforme estou aludindo, o próprio Wolff, faz um desabafo: “A verdade é que eu estava saturado da Alemanha e dos alemães: da pontualidade, da falta de humor, do mal disfarçado orgulho, da mal disfarçada arrogância, dos assuntos que não podiam ser discutidos, mas que estavam enganchados em qualquer pedaço de ar”.
Que assuntos tabus eram esses? Veremos...
Wolff também revela logo adiante no texto que, em provável razão do seu perfil étnico, em desacordo com a mistificação de “país mestiço de lusos, negros e índios”, tinha um sentimento de “sentir-se estrangeiro no Brasil” – “mas, certamente, na Alemanha me sentia mais estrangeiro ainda”, conclui. Quer dizer, Wolff ou/e seu personagem não consegue(m) observar e sentir essa “identidade comum e fraternal” que muitos tentam estabelecer entre descendentes de emigrados germânicos na América do Sul e a população alemã contemporânea, como se fizessem parte de uma supraterritorial “pátria comum”.
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O ponto crítico da viagem narrada por Fausto Wolf através do conto O travesti é o acontecido no trem que seguia a Berlim, quando, por desatenção e cansaço, o protagonista dessa história (um conto de evidente conteúdo autobiográfico), entra em uma cabine da primeira classe, tendo um bilhete para a segunda. Percebido o equívoco pelo fiscal do comboio, instala-se um histérico tribunal de acusações entre os passageiros que também estavam naquela cabine. “Todos berravam ao mesmo tempo. Agiam como se eu houvesse cometido um crime horrendo”. Não suportando mais a cena, Wolff dá um passo para trás, bate os calcanhares, estende a mão aberta e grita “Arbeit Macht Frei!” – “o moto irônico e cruel que os nazistas haviam colocado na entrada de todos campos de concentração”, significando “O Trabalho Liberta”. A teatralidade faz seu efeito e de imediato as pessoas se calam, talvez percebendo a sua indignada ironia, lembrando àqueles súbitos revelados celerados a soberba, “a prepotência alemã no tempo do III Reich”.
O assunto que não podia ser discutido tinha tudo a ver com esta questão envolvendo a Segunda Guerra Mundial. Wolff observa intrigado os alemães com mais de cinqüenta anos que passam a sua frente (depois de ter dado uma desastrosa entrevista a um programa cultural, onde desagradou “judeus alemães, o entrevistador” e seu cicerone na ocasião, declarando “que deveriam ter instalado o Estado de Israel no Vale do Ruhr e não na Palestina”), perguntando-se: “Mas será possível que ninguém sabia de nada?” Das câmaras de gás, do sádico assassinato de crianças e velhos, das experiências mortais com cobaias humanas, etc?
Passaram-se duas décadas desde o fim do terror inominável da “Era Hitler”, mas a Alemanha (ou parcela da sua população), naqueles meados de 1960, parecia ter recuperado – ou mantido? (ao menos em parte) – uma tacanhice que embasou um conflito estúpido onde o sangue de milhões de seres humanos não parecia ter sido suficiente para deixar ao largo idéias cretinas de superioridade.
*No romance À mão esquerda, Wolff, através, também, de personagens e situações autobiográficas – como no conto O travesti, onde a abordagem é bem mais rápida, embora muito interessante –, traça um painel onde se inserem as questões dos teuto-brasileiros – como ele mesmo se reconhece –, retrocedendo num exercício ficcional-histórico à Alemanha medieval, passando pela colonização germânica no Rio Grande do Sul a partir de 1824, até o Brasil e o mundo contemporâneos, centrado nos anos de 1950 até meados de 1990.
**Este texto foi redigido em 2006. Infelizmente, Fausto Wolff morreu há poucas semanas atrás. Perdemos um escritor, pensador e jornalista, enfim, um intelectual brasileiro dos melhores e mais engajados socialmente.
***Na ilustração acima, a atriz Liv Ulmann, no filme O OVO DA SERPENTE (The Serpent´s Egg), dirigido por Ingmar Bergman, EUA/Alemanha, 1978. 120 min. "Em 1923, em Berlim, pouco antes da tomada do poder pelos nazistas, um trapezista americano e sua cunhada viúva sobrevivem com dificuldade à violenta recessão econômica. Sem compreender as transformações político-sociais em curso, acabam aceitando empregos em uma clínica que faz experiências com seres humanos clandestinamente." FONTE: http://www.memorial.sp.gov.br
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