14 de out. de 2008

Escotismo: Reflexões para Entender o Movimento e Minar Atitudes Racistas

Amigos/as,

Os textos a seguir pretendem ser uma reflexão construtiva, que dedico aos escoteiros da região, aos quais tenho uma ligação indireta desde a infância, através de conhecidos que foram escoteiros na minha cidade de nascença, Venâncio Aires – onde o grupo estava desativado durante a minha infância e adolescência –, através, também, do meu irmão mais moço, que foi escoteiro após a reativação do grupo venâncio-airense, e, em especial, através de meu amigo Rafael “Chefe Bala” Amorim, com o qual há mais de uma década travo um recorrente e inesgotável debate sobre o movimento escotista, objeto de minha paradoxal admiração e crítica.

A admiração e a crítica ganharam mais consistência com a leitura da obra de Laszlo Nagy, 250 milhões de escoteiros, e Lições da escola da vida, a auto-biografia (parcial) de Baden-Powel. O livro de Laszlo me surpreendeu, ao apresentar as origens e proposta do movimento, ligadas a íntima convivência do fundador do movimento com as coisas da África e, ainda, pelo caráter aberto, democrático e autonomista da “pedagogia escotista” proposta por “BP”, contrariando o que suponho ser a “cultura militar” onde ele estava inserido desde jovem, reforçada por configurações de elitização social e para-militarismos do movimento, bastante flagrante na percepção de gente como eu.

Enfim, como em outras manifestações, quero falar da falsidade e perversidade das separações e hierarquias sociais, sejam de qualquer fundo. Se existe, mesmo que aparentemente, um caráter exclusor, conservador e anti-democrático no movimento, as palavras e a trajetória de Baden-Powell podem desmentir ou então redefinir a postura do escotismo.

Iuri J. Azeredo, agosto de 2006 (*data do envio dos artigos).




As negras raízes do escotismo

Pode até parecer um contra-senso, mas o movimento mundial criado pelo inglês Baden-Powell no começo do século 20 tem muitas ligações com o continente africano. Como militar, o jovem Robert, então capitão do exército imperial britânico, começa a conhecer a África pelo sul, ou seja, pela África do Sul.

Atou em vários conflitos na região. Um dos mais marcantes, certamente foi o da “Guerra dos Zulus”. Conforme o sociólogo e escotista suíço Laszlo Nagy, em seu livro publicado originalmente em 1985, traduzida no Brasil como 250 milhões de escoteitos, “nesta campanha militar, Baden-Powell adquiriu três coisas que deveria guardar durante o resto de seus dias. A primeira, um longo colar do chefe Dinizulu, formado por contas de madeira entalhada, o qual deveria mais tarde presentear a seus melhores Escoteiros. A segunda – uma experiência, em humildade que o ensinou não somente a apreciar as qualidades de seu adversário, mas também aprender a sua forma de vida e cultura, fosse o inimigo um Bantu ou Bôer”.

Além da insígnia derivada do colar Zulu, a canção Ingonyâma, “uma melodia majestosa e cativante que mais tarde deveria tornar-se o canto dos Escoteiros em todo mundo”, vem, da mesma forma, deste ancestral povo africano.

Robert também passou por Gana, na época, Costa do Ouro, onde mais uma vez nutriu-se da cultura local. Laszlo anota que Baden-Powell “aprendeu a apreciar a sabedoria do provérbio do povo Ashanti: ‘Devagar, devagarzinho, é que se pega o macaquinho’”, que fala da necessária suavidade e paciência para se cumprir difíceis tarefas e objetivos idealizados.

Já dedicava a África um “amor apaixonado”. Em carta a sua mãe, durante a permanência em Matabelândia, onde conviveu com gente das tribos matabeles, “passou um dos períodos mais felizes de sua vida.” E em outra região da África do Sul, na fronteira com a então Rodésia, é onde se tornará um herói britânico: Mafeking. É ali que gesta-se, no íntimo de Robert, a futura “decisão dramática de voltar às costas a todas as formas de violência e colocar o enorme capital de sua fama militar à disposição do movimento educacional não militar, com o qual o seu nome estará para sempre ligado – o Escotismo”, nas palavras de Laszlo.

Talvez a maior prova do apreço pela terra africana está no fato de Baden-Powell – que também esteve a trabalho no Egito – ter escolhido a região de Nyeri, no Quênia – onde comprou uma casa –, para viver seus últimos anos de vida, retirando-se para sempre da Inglaterra em 1938, vindo a falecer, aos 84 anos, no começo de 1941 em sua “pátria de coração”, onde está até hoje o seu venerado túmulo. Se Robert não pode escolher onde nasceu, parece que escolheu onde morrer e reintegrar o seu corpo à natureza e ter seu espírito partindo em meio às bênçãos da “Mama África”.

Portanto, é no continente africano, em meio ao povo negro, que “BP” nutre-se para fundar e dirigir até o fim de sua vida uma mobilização juvenil mundial sem precedentes. É importante ter em mente essas “negras raízes”, para que nunca se pratique, entre escotistas, discriminações por questões étnicas, de “coloração da pele” e outros atributos físico-corporais e culturais, já que na origem do escotismo está a profunda influência, apara além de exotismos e estereótipos, da população africana, tão maltratada, além de suas próprias contendas, pela ganância, intriga, opressão e exploração dos “brancos”, às quais, contraditoriamente – é preciso ter consciência –, Baden-Powel esteve a serviço enquanto soldado e súdito de um império europeu.


Complementos ao texto:

*A edição de 250 Milhões de Escoteiros,da qual foram retiradas as informações acima, foi editada pela União dos Escoteiros do Brasil/Região do RS e impresso pela Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas (CORAG), RS, em fevereiro de 1987.

*O contra-senso se refere a um senso-comum, dado pela minha (limitada) observação de que o escotimo em cidades como Venâncio Aires e Santa Cruz do Sul, além de relatos, é formado por esmagadora maioria de pessoas brancas. Nas chefias, é possível afirmar-se que, praticamente, 100% é composta por brancos. Como outras diversas instituições, a elitização sócio-econômica própria do “escotismo na prática” implica num “filtro” étnico-racial muito potente, resultado de um processo histórico geral ainda em curso no Brasil.

*O já alquebrado Robert dá mostras de sua idéia de um movimento sem exclusões – racistas, culturais, religiosas, de classe, etc. – pelas tentativas, na mesma África do Sul que conheceu ainda jovem, e para onde viaja mais uma vez em 1935, de manter a união entre grupos de escoteiros de “diversas cores” numa sociedade forte e horrivelmente marcada pelo já instalado “apartheid”, segregacionismo que se oficializou.

*“BP” também sofreu influências diretas e indiretas da cultura da Índia, onde atuou como militar, além da dos índio norte-americanos, através da obra e do contato como Ernest Thompson Seton, “um dos primeiros ecologistas dos tempos modernos”, autor de “Birch-bark Roll of the Wodcraft Indians” e criador de um programa para jovens “inspirado nos costumes de índios silvícolas”.

*O título “Negras raízes” do texto acima pode atrair pelo conteúdo “macabro” da expressão – o que é em certa medida proposital. Quase sempre palavras como negro e preto (e derivadas) são negativamente qualificadores. Assim se diz “magia negra” e “a coisa está preta” para se referir a algo perigoso e indesejável. É notável como a linguagem acaba colaborando para reforçar estigmas, já que “negro” e “preto” são designativos para afro-descendentes de pele escura aqui em nosso país.


*Quando li essa obra de Laszlo, fiquei positivamente surpreendido com várias indicações da influência africana no escotismo através do seu criador, o “BP”. Também me impressionou, conforme avançava na leitura do 250 milhões de escoteiros, a perspectiva não-autoritária da proposta educacional escotista (que quero abordar em um outro texto), o que até contradiz a cultura militar e imperialista britânica onde estava fortemente inserido Baden-Powel e a exteriorização (que pode ser interpretada como) para-bélica do movimento através de certos elementos, como o uso de uniformes, distintivos, cultos cívico, denominações como “patrulha”, “tropa” e outras caracterizações e atividades inspiradas nas tradições castrenses e no treinamento de cadetes.

*“BP” era “um homem do seu tempo”, quer dizer, compartilhava valores característicos de um branco europeu que viveu na transição dos séculos XIX ao XX, formado dentro de instituições da Inglaterra ainda potência imperial e imperialista, com domínios em praticamente todo o planeta, arrogando-se detentora da mais avançada “civilização”. Na antropologia cultural é usado um termo, “etnocentrismo”, para se referir a centralidade que temos, enquanto membro de um grupo humano, ao avaliar outros grupos, quase sempre de forma depreciativa e de estranhamento. A forma de combater tal visão “etno-centrada” é relativizar: avaliar os “outros” a partir dos valores, da cosmovisão, desses “outros”, e não a partir de “nossos” próprio parâmetros.


OBS.: Contatos comigo podem ser feitos pelo e-mail iuriaz@hotmal.com


# Há uma versão com pequenas alterações modificada destes textos que foi publicada no blog mantido pelo “Chefe Bala” – Grupo de Escoteiros de Santa Cruz do Sul.


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Amigos/as:

Seguem abaixo outras reflexões sobre o escotismo que acabei redigindo nas últimas semanas a partir de conversas e leituras – como o Escotismo para rapazes, o Manual do escotista: ramo lobinho e o O livro da selva. São três textos com complementos, um buscando a influência indiana dentro do escotismo, outro retomando a colaboração da cultura africana e, por último, a menção do “gaúcho” na obra clásica de “BP”. Espero que elas sejam de algum modo úteis para pensarmos a complexidade, amplidão e a multiplicidade étnica que perpassam o escotismo.

Iuri Azeredo

Santa Cruz do Sul, outubro de 2006.


Além da África, a Índia no coração do Escotismo


Por IURI AZEREDO

Já mencionei a influência de elementos da cultura africana no escotismo a partir de Robert Baden-Powell, fundador do movimento, que viveu na África e apaixonou-se pelo continente, escolhendo-o como terra para o desenlace da sua alma e o retorno do seu corpo à natureza – num gesto de significado simbólico imenso e às vezes desapercebido no meio escotista.

Mas além do continente africano, há outra influência cultural internacional muito importante e também pouco considerada: A da milenar Índia, mais uma região de gente de pele muito morena, com traços físicos e cosmovisão não-européias. Talvez a mais forte evidência disso esteja no fundo didático-pedagógico que Baden-Powel – que iniciou sua carreira militar na Índia, em 1876 – definiu para o ramo que abrange as crianças dentro da organização escotista, os Lobinhos. Tratam-se dos contos do escritor nascido – de pais ingleses – e criado na Índia, Rudyard Kipling, mais especificamente as histórias dos O Livro da Selva e O Segundo Livro da Selva, onde aparece o personagem Mogli, popularizado pelo cinema na versão dos estúdios de Walt Disney.

O sociólogo Laszlo Nagi, em sua obra 250 Milhões de Escoteiros, saída no Brasil em 1987, diz que “em sua maneira usual, pragmática, Baden-Powell transformou as imagens poéticas [como a das aventuras e desventuras do menino Mogli] em uma forma de vida prática, adaptando os sonhos e alegrias de Kipling em um método educacional para pessoas jovens”, complementando que “este casamento feliz da poesia com a ação permanece como um elemento importante na história de sucesso do Escotismo.”

O Manual dos Lobinhos, segundo Laszlo, é inspirado diretamente nos dois “Livros da Selva” (ou da “Jângal”, conforme a tradução ao português), publicados por Kipling original e respectivamente em 1894 e 1895, e considerados as suas obras-primas, cheios de referências à geografia, à fauna, à flora, à história, ao folclore e costumes do povo indiano e de países arredores. Contemporâneo de Baden-Powell, Rudyard recebeu o Prêmio Nobel em 1907, consagrando-se como poeta, contista e romancista de grande atividade social pelo mundo inteiro.

Mogli (ou Mowgli, dependendo do tradutor) é um menino criado dentro de uma família e comunidade de lobos da selva indiana, onde se agregam outros animais, como o urso Baloo, a pantera Bagueera, o abutre Chil, a serpente Kaa, o tigre “vilão” Shere Khan, além das importantes figuras de Akela, o lobo líder do conselho, e a mãe adotiva do bebê perdido, a corajosa e decidida loba Raksha. Entre os humanos, lá estão personagens típicos do que ainda era a Índia do final do século XIX, berço do budismo e de religiões ainda mais antigas e, enfim, de uma civilização complexa muito anterior à Europa cristã.

Assim como Baden-Powell, Rudyard Kipling é “um homem do seu tempo”, com seus inescapáveis vínculos com as idéias que vigoravam no então imenso e poderoso Império Britânico. Mas quero destacar, mais uma vez, a contribuição especial – mesmo que através do filtro de “cara-pálidas” como “BP” e “RK” – de povos “não-ocidentais” na formulação e manifestação do movimento escotista. Tal consideração é uma prevenção, uma lembrança, uma barreira para atitudes racistas no dia-a-dia deste imenso e quase centenário movimento educacional de dimensões mundiais. A África e a Índia estão no “sangue” do escotismo e a discriminação por questões de cor da pele e vínculos étnico-raciais uma impostura a um Escoteiro – desde o tempo de Lobinho!

Santa Cruz do Sul, outubro de 2006.



Complementos:

*O Livro da Jângal foi o título na tradução de Monteiro Lobato, que também traduziu outros contos de Kipling, além do romance Kim, outra obra referencial ao escotismo.

*Há O Segundo livro da Selva, publicado no ano seguinte ao primeiro volume (1894). Este “The Second jungle book” foi ilustrado pelo pai de Rudyard, John Lockwood Kipling. A ilustração que tive acesso, acheia-a sensacional – bem mais fiel, vigorosa e poética do que a versão infantilóide dada pelo estúdio de Walt Disney, que popularizou Mogli nesta versão por demais infantilizada – açucarada/adulterada.

*Há, ainda, O terceiro livro da selva, publicado em 1992, de uma escritora americana, Pámela Jakel, que, dizem, foi muito fiel com o “espírito” das histórias de Kipling, criando enredos que cobrem outros períodos da vida de Mogli, além de contos no estilo “fábulas aventurescas” característico do de Rudyard.

*Kipling, que veio ao Brasil em 1927, teve, em sua tenra infância na Índia (onde nasceu em 1865), uma babá de Goa – território na antiga Índia dominado pelos portugueses – que falava o Português, conforme está na introdução de Cenas brasileiras, livro que narra, com a exuberância kipliniana, as impressões sobre passagem do autor de O livro da selva no Brasil. Está aí, talvez, mais um elo entre Rudyard, sua obra-prima da literatura infanto-juvenil, o escotismo/“lobinhoismo” e o nosso país.

*Kim é um romance especialmente referencial para o escotismo – em razão da própria citação e recomendação de leitura feita por Banden-Powell, que inclusive desenvolve uma resenha e resumo sobre essa obra no seu fundante manual Escotismo para rapazes. Na página 30, “As aventuras de Kim”, BP começa dizendo: “Um bom exemplo do que um Escoteiro pode fazer, acha-se na história de Kim narrada por Rudyard Kipling.” Antes, ao comentar a 4ª “Lei do Escoteiro”, BP diz: “Kim era chamado de ‘o amiguinho de todos’, e este é o apelido que cada escoteiro deve conquistar para si.”

Baden-Powell e Rudyard Kipling têm muitas coisas em comum, além de serem contemporâneos (nasceram e morreram respectivamente em 1857/1941 e 1865/1936). Ambos viveram e fizeram a defesa do imperialismo britânico e sua “missão civilizadora” no atravessar do século XIX e XX. Ambos conheceram com profundidade regiões e povos da África (onde BP faleceu) e da Índia (onde Kipling nasceu), além de viajarem por inúmeros outros países ao longo de suas vidas. Ambos eram “moralistas”, desenvolvendo esforços para disseminar suas idéias – BP fundando o Movimento Escotista e Kipling escrevendo e palestrando pelo mundo todo. Ambos também foram reconhecidos ainda em vida (BP foi agraciado com o título nobiliárquico de Lord em 1929, e Kipling recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1907) e suas obras permanecem no cenário social e cultural de praticamente o mundo inteiro – até mesmo pela associação direta – das mais interessantes – entre o movimento infanto-juvenil de Baden-Powell (Lobinhos, Escoteiros e Bandeirantes) e a literatura também vinculada a crianças e jovens de Kipling (O Livro da Selva e Kim, entre outros), com já aludi. Quem ao menos não ouviu falar em “escoteiros” ou em Mogli? Mesmo que os “pais” destas criações tenham submergido pelo avanço de suas “criaturas”, para quem for mais a fundo, encontrará nesses “filhos” as personalidades, as idéias e as vidas destes dois pensadores e “homens de ação” e, frise-se, também “homens do seu tempo”, vinculados a conceitos e valores contestáveis e até execráveis. Mesmo assim, há uma força e magia para além das ideologias datadas das obras de BP e Kipling. E é isso que mantém os seus apelos de fruição e, digamos, suas utilidades no mundo contemporâneo.

*No Dicionário Enciclopédico Koogan Laroussse, de 1980, sobre Kipling, diz que “Suas poesias e os romances Livros da Selva (1849-1895) e Kim (1901) celebram a superioridade do imperialismo anglo-saxão.” Sem dúvida é uma advertência importante para lermos tais obras e, em conseqüência, avaliarmos criticamente outras criações referenciadas nelas, caso do “Lobinhismo” (O livro da selva, primeiro e segundo volumes) e mesmo do “Escotismo para rapazes” (que remete-se a Kim) de Baden-Powell.

Mas a crítica, que considera Rudyard “o principal representante da literatura imperialista”, às vezes pode ser uma interpretação superficial: “O que Kipling mostra, mais que a presunção do propagandista, é a preocupação do moralista. Preocupa-o certamente o futuro do império britânico, que sabe que vai acabar por desaparecer, mas sustenta que as suas instituições devem defender-se a partir de uma postura ética. Para Kipling, a ação do homem recupera significado na sua dimensão social. Por isso lhe interessam tanto as comunidades militares e escolares e, inclusive, a singular associação dos animais da selva”, conforme texto retirado da internet. Em outro comentário acessado na rede, diz-se que Kipling é “Considerado ‘o Poeta do Império [britânico]’, laureado com o Prêmio Nobel em 1907, [...] é um autor que tem gerado grandes controvérsias. A sua defesa da ‘missão imperial’ inglesa, as suas posições anti-semíticas e misóginas (‘a fêmea da espécie é mais mortífera do que o macho’), por exemplo, são responsáveis por uma certa quebra de popularidade deste autor, mas a complexidade e o vigor da sua obra e da sua escrita continuam a merecer a atenção da crítica e a devoção de muitos leitores.”

Portanto, a preocupação moralista (pautar-se em valores considerados nobres), a defesa de posições a partir da ética, a importância da dimensão social em todas as ações humanas (em contraponto a todo tipo de egoísmos), além da complexidade, vigor e poética da sua obra devem ser contrapostos a posturas execráveis do autor lidas em nossa época. Considerar estas dimensões de Kipling – na continuidade do encantamento de seus contos infanto-juvenis, onde aparecem personagens tão longevos como o menino indiano Mowgli e a perene influência em métodos de educação para crianças, caso dos Lobinhos, dentro do centenário e internacional Movimento Escotista – é evitar o equívoco de simplesmente “jogá-lo no lixo”, fazendo-se como naquela historieta popular, que fala de se ter o cuidado de não jogar o bebê da banheira junto com a água suja...

*Tenho comigo duas versões da obra Kipling que saíram no Brasil nos últimos anos, a O livro da selva, da LPM, 1997, tradução de Vera Karam, e O livro da jângal, da Martin Claret, 2004, tradução de Jean Melville. O segundo é uma coletânea do The second jungle book e do The jungle book. As leituras dos contos onde aparece Mowgli me surpreenderam, me impressionaram, me revelaram um personagem muito mais “selvagem”, agressivo, aventureiro e também poético do que o infantilóide Mowgli caracterizado pela versão dos estúdios Disney (tal versão é a que estava difusamente registrada em minha memória, não despertando, assim, maior interesse da minha parte). Todos os personagens são mais vigorosos e poeticamente viscerais do que esta versão açucarada do cinema. Da leitura, emerge um Mowgli destemido, até soberbo, às vezes, cheio de conflitos em sua juventude, acompanhado de personagens animais e humanos de consistência muito mais densa, como já fiz alusão.


Povos africanos: referência para o escotismo de Baden-Powell

A evidente influência de elementos da cultura de povos africanos na base do escotismo, através, em especial, do seu fundador, o inglês Robert Baden-Powell, também fica patente na sua obra que vem a ser o manual clássico do movimento mundial, o Escotismo para rapazes. A edição que tenho em mãos é de 1975, publicada pela União dos Escoteiros do Brasil.

Numa leitura rápida, já é possível perceber dezenas de referências diretas à África, com constantes citações de situações vividas por “BP” no continente, em especial no sul, onde hoje está a África do Sul e países adjacentes – incluindo a ex-colônia portuguesa, Moçambique, que, aliás, compartilha com o Brasil muitas identidades, a começar pela língua oficial – o Português (e, assim, talvez possamos estabelecer uma relação bem interessante entre Escotismo/“BP”/África/Brasil através de povos negros, considerando que o nosso país é a segunda nação no mundo em contingente populacional afro-descendente, influída profundamente pela cultura de muitos grupos saídos do continente africano).

São muitas as ilustrações onde a África, seu povo, a cultura, objetos, geografia e sua história ficam registradas pela mão do próprio Baden-Powell, que, entre muitas habilidades, era um ótimo desenhista. Um desses “retratos” mostra a “Dança Guerreira” dos jovens do grupo Kikunyu [ilustração na pág. 74], que inspirou a mística escotista internacional feita com o cântico Ingoniama – também de origem africana, da tribo Zulu.

Tambores de sinalização [ilustração da pág. 117], construção de abrigos, técnicas de rastreamento e deslocamento em terrenos difíceis, guerreiros, mulheres e paisagens africanas aparecem pela pena de “BP” como direta às coisas da África.

E é ainda no Escotismo para rapazes que Baden-Powell cita como “escoteiros por excelência” os rapazes Zulus, “porque tinham aprendido, quando meninos, a técnica da exploração” (pág. 77), passando por desafios viscerais na transição da adolescência para a condição de jovem-adulto. Vai enumerando as tarefas que o menino Zulu deveria cumprir para ser reconhecido como plenamente capaz: “Tinha que seguir pegadas...” “Tinha que fazer fogo para cozinhar...” “Tinha que conhecer quais as plantas boas para comer...” “Tinha que construir uma cabana...” São tarefas até hoje comuns nas atividades escotistas do mundo inteiro e constam no “manual” como inerentes à cultura de povos africanos, que, assim, são apresentados por “BP” como exemplos positivos.

Esta positividade em relação aos povos da África e vários outros grupos humanos que Baden-Powell vai citando em todas as suas obras, reforça, como bem demonstra outra ilustração sua – onde um rapaz escoteiro salta sobre um cerca, superando “empecilhos” como “Questões Raciais” e “Diferenças Religiosas” [ilustração da pág. 315] –, que dentro do movimento escotista deve-se manter “sempre alerta” às discriminações, lutando para que sejam ultrapassadas e que cada grupo dê acesso às várias etnias que formam a comunidade local.

Complementos:

*No Manual do Escotista: ramo lobinho: um método de educação não-formal para meninos e meninas de 7 a 11 anos, publicado pela União dos Escoteiros do Brasil, em 1998, é dito (pág. 50) “lobinhos e lobinhas se cumprimentam com a mão esquerda, costume adotado por Baden-Powell depois de seu encontro com a tribo africana dos Ashanti, que dessa forma expressavam confiança, já que para dar a mão esquerda deviam largar o escudo que os protegia.” Ou seja, novamente – como vários outros casos –, algo do simbolismo, da mística, do cotidiano escotista emana diretamente da vivência e reverência de Robert Baden-Powell à África, tornando elementos próprios da cultura de povos daquele continente em referenciais para a cultura escotista.

*Considerando, como diz o texto acima, “que dentro do movimento escotista deve-se manter ‘sempre alerta’ às discriminações, lutando para que sejam ultrapassadas e que cada grupo dê acesso às várias etnias que formam a comunidade local”, poderíamos, com exemplo, nos indagar sobre o caso de Santa Cruz do Sul (RS), município composto por cerca de 24% de afro-descendentes (dados de 2005, a partir de pesquisas coordenadas pelo Prof. Sílvio Correa, da Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc): Qual é o percentual de negros no grupamento escoteiro santa-cruzense? Uma ligeira observação nos dirá que este percentual é muito abaixo de 24% em todos os setores do movimento ecotista local – pra não dizer que é “0%”...

*Sobre possíveis relações entre o “Escotismo/‘BP’/África/Brasil através de povos negros, considerando que o nosso país é a segunda nação no mundo em contingente populacional afro-descendente, influída profundamente pela cultura de muitos grupos saídos do continente africano”, no Escotismo para rapazes (pág. 33), há um mapa desenhado por Baden-Powell mostrando a área da África do Sul onde aparece o “Portuguese Territory”, provavelmente onde está hoje Moçambique, colônia, à época, de Portugal, e de onde vieram negros e negras para o Brasil, mantendo, até hoje, identificações históricas, étnicas e lingüísticas com o povo brasileiro. Os Zulus, seguidamente citados por “BP”, habitavam áreas do “Portuguese Territory”. Aliás, a demarcação de limites artificiais por parte de países europeus que ocupavam e dominavam a região – não respeitando a “geografia” ancestral, definida pela presença transfronteiras de grupos étnicos tradicionais, caso dos Zulus – foram fontes de conflitos que se mantiveram após a liberação de países do jugo “branco”.


O causo do gaúcho na obra
de Baden-Powell – “Sempre alerta, tchê!”

Outra curiosidade: os gaúchos, ou seja, os mestiços com raízes nos grupos indígenas do pampa sul-americano são destacados por Robert Baden-Powell no seu clássico Escotismo para Rapazes, obra ainda referencial para o movimento mundial.

No capítulo 13 – Conversa de Fogo de Conselho: Leitura de Indícios ou Dedução –, na edição de 1975, publicada pela União dos Escoteiros do Brasil, “BP”, para tratar da utilidade e formação de habilidades para reconhecer “pistas”, menciona os “rastreadores sul-americanos” – os “vaqueiros nativos da América do Sul”, os “gauchos” (sem o acento no “u”), conforme está na tradução que tenho em mãos.

Conforme de costume, o “Pai do Escotismo” conta um episódio (página 223) para ilustrar a “lição”, dando um “sabor” peculiar característico de suas obras, que atrai o jovem leitor: Um gaúcho estava atrás de um cavalo que fora roubado, mas não obteve sucesso imediato na captura; dez meses depois, entretanto, andando em uma outra região, percebeu “pegadas frescas” do animal; seguiu-as e, afinal, recuperou o cavalo. Algo extraordinário – por isto a citação de “BP” como exemplo –, mas não impossível para um “gaudério” nascido e criado “no lombo do cavalo”, educado por velhos tropeiros, por antigos índios, acampando nos campos, convivendo 24 horas por dia com os eqüinos e demais flora e fauna pampiana.

A atenção aos detalhes, a memória ativa, enfim , o lema “sempre alerta” é claramente estampado nesta referência aos “homens do pampa”, indivíduos originados no caldeamento genético e cultural entre os nativos indígenas e os grupos de origem européia e africana que foram ocupando o território onde hoje estão partes do Brasil, Uruguai e Argentina.

Assim é que o Rio Grande do Sul, através da notória habilidade do “criolo” – definido aqui como o indivíduo com descendência estrangeira, em especial espanhóis e portugueses, mas já nascido e radicados em terras desta parte da América Latina – liga-se à proposta educacional de Baden-Powell, somando-se a constante referência a outros povos nativos da África (zulus, metabeles, aschantis, etc.), da Índia, da Austrália (os aborígines), da América do Norte (os “peles-vermelhas”), entre outros. Mesmo que sob uma perspectiva etnocêntrica (termo da antropologia cultural), própria de um militar a serviço do então todo poderoso e imenso império britânico, vivendo o que era o início do século XX, “BP” desencadeia uma mobilização juvenil de inegável sucesso e inúmeras derivações – e cuja abertura à diversidade cultural, a presença e o real respeito a todas as etnias, jamais pode ser esquecida por um “Verdadeiro Escotista”.

Complemento:

*Reforço que acredito ser fundamental considerarmos as – digamos assim – deturpações e até mesmo os equívocos do “filtro anglo-saxão” inerente a um “homem do seu tempo” como Robert Baden-Powell – um condecorado militar britânico imerso num caldo cultural encorpado por uma transição (do séculos XIX para o XX). Desconsiderar tal fato é uma temeridade e um endosso a leituras fundamentalistas dos escritos de BP, incluindo o germinal Escotismo para rapazes. Por minhas leituras e intuições sobre BP – pessoa dotada de uma sutil e bem-humorada autocrítica –, creio que ele não endossaria um “engessamento” de suas idéias.

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#Introdução em e-mail para o Bolori...

Dentro da nova "temática" que o tiozinho aqui se propôs estudar - o escotismo -, produzi mais um textículo, dessa vez sobre os Lobinhos. Neste ramo, que abrange crianças entre 7 e 11 anos, o que mais me tem fascinado é o fato de que Baden-Powell, fundador do movimento, pegou como fundo ou base didático-pedagógica uma obra clássica da literatura infanto-juvenil, O LIVRO DA SELVA - onde aparece o personagem Mogli, o menino indiano acolhido por uma família de lobos -, de Rudyard Kipling. Obra que todo adulto poderá ler com deleite (a original, não as versões infantilóides, caso dos desenhos da Disney). O que ressaltei no mini-artigo, que vai abaixo, é mais uma colaboração "não-européia", "não-branca" na formação do escotismo baden-powelliano, ou seja, elementos vinculados à Índia (assim como já havia falado de elementos vinculados à África). Minha idéia é, em suma, munir um discurso que solape a prática - velada ou explícita - da discriminação dentro de grupos escotistas.Também mando uma ilustração (que retirei na Wikipédia) de Mogli, que está no The Second Jungle Book. Foi o pai de Kipling que fez os desenhos. Achei fantástica esta ilustração - um contraponto àquela "versão Disney" babaquenta que mencionei acima.

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#E-mails com alguns comentários – O fundo didático-pedagógico dos Lobinhos


LOBOS DA ÍNDIA

Valeu, Xandu!!!
E já que tu gostaste do, assunto - que também diz respeito a como uma literatura de defesa do imperialismo pode ser proveitosa -, mando abaixo mais alguns complementos ao texto já remetido.

Pode parecer muito tola a atenção que tenho dedicado ao escotismo. Mas agora me impressiona a desconsideração a um movimento educacional mundial, que vai fazer 100 anos em 2007, que congregou ao longo de sua história cerca de 300 milhões de crianças e jovens por países tão díspares como a Finlândia e o Iraque. Que tipo de "mel" atrai essas "abelhas"? Será pelo teor autoritário e militaresco tão aparente do escotismo, que traz inúmeros recalcados para o seio do movimento? Mas tenho localizado outros elementos, que passam desapercebidos, caso que menciono aqui da influência e continuidade de uma obra artística no e através de uma organização tão ampla e polêmica.

Iuri

A SELVA NA ESCOLA

Olá, Prof. Elenor!

Como fiz com a Profa. Luciana Loponte, coordenadora do Curso de Pedagogia, compartilho contigo um tema que envolve o Escotismo - movimento que vai completar 100 anos, criado, como é sabido, pelo militar inglês Baden-Powell, espalhando-se pelo mundo inteiro como uma proposta de educação não-formal complementar à escola. Algumas leituras e observações que ando fazendo nos últimos meses têm me revelado um "manancial" para monografias, dissertações e teses bem pouco explorado na área da Pedagogia e mesmo da Letras, entre outras.

Um dos aspectos que mais têm me intrigado é fato de que todo o fundo didático-pedagógica dos Lobinhos - o ramo infantil dos escoteiros, que abrange meninos e meninas dos 7 aos 11 anos - estar baseada numa obra clássica da literatura infanto-juvenil, os contos d'O Livro da Selva (na verdade o O livro da Selva e também O Segundo Livro da Selva), de Rudyard Kipling, onde aparece o personagem Mogli (ou Mowgli) - o menino indiano adotado por uma família de lobos. Os manuais, os métodos, as "místicas", os trabalhos com as crianças, enfim, são referenciados em personagens e situações vividas nos contos - popularizados em especial pela versão açucarada (adulterada, talvez) de Walt Disney.

Como é que contos para crianças e jovens se tornam um elemento central de uma proposta educacional? Por que Baden-Powel escolheu O Livro da Selva, obra de um escritor nascido e criado na Índia na parte final do século XIX, que se passa principalmente na selva e aldeia indianas? Como essa proposta vem se desenvolvendo? Como isso se mantém após quase um século de aplicação, envolvendo milhares de pessoas em países tão variados? Há outros exemplos de uso da Literatura como base didático-pedagógica tão explícita? Etc.

Bem, como já disse, é só para compartilhar um tema contigo - como tenho feito com outras pessoas que podem ter algum interesse no assunto.

Agradeço a atenção e um abraço do

Iuri.

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