Com o seu prédio inaugurado solenemente em 1939, a imponência neogótica da atual catedral de Santa Cruz do Sul pode ser vista como uma afirmação do caráter germânico ideologicamente construído no município. A edificação anterior, que abrigou o primeiro templo católico santa-cruzense, foi inaugurada em 1863 (portanto, 76 anos antes) e localizava-se bem em frente ao atual templo [foto ao lado], seguindo as linhas do que poderíamos chamar de “padrão luso”, derivado da herança estético-arquitetônica da colonização portuguesa, como ainda bem se vê em igrejas como as de Santo Amaro, Rio Pardo e até na do distrito local de Cerro Alegre.
Diferente dos protestantes, que vieram à região do Vale do Rio Pardo trazendo “de fora” (direto da região que depois se tornou a Alemanha) seus rituais e expressões religiosas (inclusive no molde dos templos, quando assim era possível), os católicos santa-cruzenses tinham o seu máximo monumento à fé cristã “demasiado brasileiro” para um grupo étnico que já havia alcançado a hegemonia econômica e política na comunidade e, ao que parece, queria demonstrar isto com veemência. Ou seja, a origem luso-brasileira estava ainda muito explícita em uma cidade que, a partir de certo momento, queria se caracterizar como “tipicamente alemã”. Ainda em outras palavras: o máximo templo da comunidade católica santa-cruzense transparecia a presença marcante da cultura de base lusitana em Santa Cruz do Sul, não mais condizente com o “espírito teuto” que dominava o município. Germanizar era preciso...
A nova igreja, erguida nos fundos da “velha”, não apenas estava substituindo o pesado prédio, cujo empreiteiro foi o inglês Guilherme Lewis, casado com a famosa Dona Carlota – uma das primeiras famílias a se estabelecer no povoado com suas simétricas ruas e logradouros recém demarcados (sob a direção do Capitão Tenente da Armada Francisco Candido de Castro Menezes). A majestade dada à nova edificação, desenhada pelo austríaco Simão Gramlich lá por 1925 (que acabou se impondo numa escolha conturbada, onde o primeiro lugar no concurso oficial ficou, na verdade, com o projeto em estilo barroco, característico da Itália e países latinos, do arquiteto Vitorino Zani), com suas duas pontiagudas torres de 80 metros, não apensas substituiu, mas suplantou de forma acachapante o templo católico dos primórdios do pequeno burgo projetado no modelo ortogonal pombalino (adjetivo derivado do famoso ministro do império português, o Marques de Pombal****), ofuscando, assim, as possibilidades de vislumbre de um passado onde os luso-descendentes – entre outras grupos étnicos e personalidades “não-alemãs” – tiveram um papel fundamental.
Ao ser derrubado, em 1940, o que restava do primeiro templo católico santa-cruzense, derrubava-se também mais um pouco dos registros históricos explícitos da multiculturalidade do município. Vai-se pouco a pouco constituindo simbolicamente a germanidade santa-cruzense, a ponto de tornar-se, cultural e politicamente, quase totalitária. Santa Cruz do Sul transfigura-se no imaginário, paulatina e deliberadamente, numa “pequena Alemanha”. E a catedral, erguida nos escombros do (assim considerado por algusn grupos) “arcaico” templo original “modelo luso-brasileiro”, torna-se por excelência o “cartão-postal”***** desta estereotipada “cidade ariana”...
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Notas:
* O texto acima são especulações que coloco como uma provocação intelectual positiva, problematizando a “história santa-cruzense”, a fim de alargar a visão sobre a constituição do nosso município, cuja complexidade formativa muitas vezes dá lugar a um folclorização calcada em uma etnofilia explícita; está muito longe de ser um estudo exaustivo, tratando-se de reflexões preliminares calcados em algumas leituras, apresentadas de forma muito sintética e pessoal.
** “Etnização do espaço urbano santa-cruzense”. Este também poderia ser o título deste texto sobre o processo ocorrido com o principal templo católico e “símbolo municipal” santa-cruzense.
*** Processo semelhante ocorreu ma tranformação do “Parque da Fenaf” (local para a realização da Festa Nacional do Fumo) em “Parque da Oktoberfest”. Fachadas e outros elementos do paisagismo foram alterados, “germanizando” o espaço (como a introdução de um mastro “típico em localidade alemãs” – embora não se tenha notícia de algum em comunidades de imigrantes assentados na região de Santa Cruz do Sul).
**** Quando li o livro do Irton Marx, sobre a criação da “República do pampa”, fiquei pasmo com algumas “argumentações” do vereador santa-cruzense mais votado (nas eleições de 2004). Numa das ilustrações , que buscam “provar” as diferenças entre a “desenvolvida” Santa Cruz e a “atrasada” Rio Pardo, estava a das ruas retilíneas da cidade germânica, contra o “caos lusitano” das vias e prédios rio-pardenses. Escrevi um pouco sobre isso um tempão atrás e recebi muitos “elogios” de ferrenhos defensores das teses “irton-marxistas”. Lembrei disso neste fim de semana ao ler um artigo da revista Ágora (não confundir com a Agora), do Departamento de História e Geografia da Unisc. O artigo é da professora de arquitetura Maria da Graça Sebbem, com o título “A corrente imigratória alemã e a formação urbana”. Após analisar as características das aldeias alemãs donde vieram os imigrantes e os assentamentos aqui no Brasil, destacando Santa Cruz, Venâncio Aires, São Leopoldo, Novo Hamburgo e outros, ela conclui que “as colônias [a ocupação no meio rural] alemãs do RS foram planejadas por técnicos de origem lusa, baseadas na concepção da cultura lusitana. No último parágrafo arremata: “a forma das cidades [os assentamentos urbanos] de imigração alemã no RS herdaram poucas influências(ou nenhuma) das cidades alemãs de onde vieram os imigrantes.”
*****O livro Catedral São João Batista (Edunisc, 2006) do professor e arquiteto Ronaldo Wink é um importante documento, com vários dados fundamentais para se perceber a importância, a magnitude, o simbolismo do templo católico máximo santa-cruzense. E, para além de subjetivismos que não caberiam num trabalho estritamente acadêmico e a continuidade de um enfoque historiográfico centrado num grupo étnico – os teuto-descendentes –, emergem, direta e indiretamente, informações que podem gerar, paradoxalmente, uma abertura à visão “germanófila” (apologética e vitimista) da história de Santa Cruz do Sul. Após 76 anos de uso (os dados já foram mencionados no texto acima), a destruição da antiga matriz, erguida praticamente junto com o núcleo planejado e executado pelo governo provincial (urbanificando o que era um povoado – o Faxinal do João Faria) e várias vezes ampliado, carregando em suas estruturas a estética, o trabalho e a devoção de inúmeras personalidades e grupos étnicos dos primórdios da região de Santa Cruz – lusos, negros (os trabalhadores por excelência na época, que até os tijolos fizeram – vários, provavelmente, na base da atual catedral), teutos (já chegados na localidade), mestiços (índios arranchados pela região e no aldeamento de São Nicolau, em Rio Pardo) e até ingleses, como o empreiteiro Guilherme Lewis e seu filho pintor (responsável pelas pinturas internas do templo original), além de sua esposa, Dona Carlota, notória liderança comunitária (como ressalta o médico e estudioso viajante Robert Avé-Lallemant) –, essa sólida construção, pronta para durar séculos, é simplesmente eliminada. A prova da sua fortaleza está nos trabalhos finais de demolição, que consumiram oito meses e demandaram técnicas especiais para o seu solapamento completo (ver páginas 85 e 86) – sendo que havia outras alternativas à eliminação da entroncada e enraizada edificação. Mas apesar dos esforços em contrário de pessoas e manifestações de parcelas da comunidade (ver a ação do Pe. Alfredo Blay), a igreja, quase octogenária, esfumaçou-se para a “total glória” do projeto original do alemão/austríaco Simon Gramlich, modificado pelos engenheiros Heinerich Schütz e Ernest Matheiz. Um ato que hoje seria considerado bárbaro, irresponsável, escandaloso e até criminoso. Mesmo tendo se passado 58 anos (em 2008) do final da destruição do antigo templo, tal fato deveria nos constranger ou ao menos ser motivo de reflexão – enquanto munícipes santa-cruzenses. Afinal, que tipo de valorização do passado, dos antepassados, dos documentos e outros elementos históricos nós em verdade queríamos e queremos preservar e difundir? Em que medida e qual significado e dimensão político-ideológico se insere a substituição da antiga matriz “brasileira” pela catedral “alemã”? São hipóteses e questionamentos que ainda precisam de aprofundamentos.
Diferente dos protestantes, que vieram à região do Vale do Rio Pardo trazendo “de fora” (direto da região que depois se tornou a Alemanha) seus rituais e expressões religiosas (inclusive no molde dos templos, quando assim era possível), os católicos santa-cruzenses tinham o seu máximo monumento à fé cristã “demasiado brasileiro” para um grupo étnico que já havia alcançado a hegemonia econômica e política na comunidade e, ao que parece, queria demonstrar isto com veemência. Ou seja, a origem luso-brasileira estava ainda muito explícita em uma cidade que, a partir de certo momento, queria se caracterizar como “tipicamente alemã”. Ainda em outras palavras: o máximo templo da comunidade católica santa-cruzense transparecia a presença marcante da cultura de base lusitana em Santa Cruz do Sul, não mais condizente com o “espírito teuto” que dominava o município. Germanizar era preciso...
A nova igreja, erguida nos fundos da “velha”, não apenas estava substituindo o pesado prédio, cujo empreiteiro foi o inglês Guilherme Lewis, casado com a famosa Dona Carlota – uma das primeiras famílias a se estabelecer no povoado com suas simétricas ruas e logradouros recém demarcados (sob a direção do Capitão Tenente da Armada Francisco Candido de Castro Menezes). A majestade dada à nova edificação, desenhada pelo austríaco Simão Gramlich lá por 1925 (que acabou se impondo numa escolha conturbada, onde o primeiro lugar no concurso oficial ficou, na verdade, com o projeto em estilo barroco, característico da Itália e países latinos, do arquiteto Vitorino Zani), com suas duas pontiagudas torres de 80 metros, não apensas substituiu, mas suplantou de forma acachapante o templo católico dos primórdios do pequeno burgo projetado no modelo ortogonal pombalino (adjetivo derivado do famoso ministro do império português, o Marques de Pombal****), ofuscando, assim, as possibilidades de vislumbre de um passado onde os luso-descendentes – entre outras grupos étnicos e personalidades “não-alemãs” – tiveram um papel fundamental.
Ao ser derrubado, em 1940, o que restava do primeiro templo católico santa-cruzense, derrubava-se também mais um pouco dos registros históricos explícitos da multiculturalidade do município. Vai-se pouco a pouco constituindo simbolicamente a germanidade santa-cruzense, a ponto de tornar-se, cultural e politicamente, quase totalitária. Santa Cruz do Sul transfigura-se no imaginário, paulatina e deliberadamente, numa “pequena Alemanha”. E a catedral, erguida nos escombros do (assim considerado por algusn grupos) “arcaico” templo original “modelo luso-brasileiro”, torna-se por excelência o “cartão-postal”***** desta estereotipada “cidade ariana”...
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Notas:
* O texto acima são especulações que coloco como uma provocação intelectual positiva, problematizando a “história santa-cruzense”, a fim de alargar a visão sobre a constituição do nosso município, cuja complexidade formativa muitas vezes dá lugar a um folclorização calcada em uma etnofilia explícita; está muito longe de ser um estudo exaustivo, tratando-se de reflexões preliminares calcados em algumas leituras, apresentadas de forma muito sintética e pessoal.
** “Etnização do espaço urbano santa-cruzense”. Este também poderia ser o título deste texto sobre o processo ocorrido com o principal templo católico e “símbolo municipal” santa-cruzense.
*** Processo semelhante ocorreu ma tranformação do “Parque da Fenaf” (local para a realização da Festa Nacional do Fumo) em “Parque da Oktoberfest”. Fachadas e outros elementos do paisagismo foram alterados, “germanizando” o espaço (como a introdução de um mastro “típico em localidade alemãs” – embora não se tenha notícia de algum em comunidades de imigrantes assentados na região de Santa Cruz do Sul).
**** Quando li o livro do Irton Marx, sobre a criação da “República do pampa”, fiquei pasmo com algumas “argumentações” do vereador santa-cruzense mais votado (nas eleições de 2004). Numa das ilustrações , que buscam “provar” as diferenças entre a “desenvolvida” Santa Cruz e a “atrasada” Rio Pardo, estava a das ruas retilíneas da cidade germânica, contra o “caos lusitano” das vias e prédios rio-pardenses. Escrevi um pouco sobre isso um tempão atrás e recebi muitos “elogios” de ferrenhos defensores das teses “irton-marxistas”. Lembrei disso neste fim de semana ao ler um artigo da revista Ágora (não confundir com a Agora), do Departamento de História e Geografia da Unisc. O artigo é da professora de arquitetura Maria da Graça Sebbem, com o título “A corrente imigratória alemã e a formação urbana”. Após analisar as características das aldeias alemãs donde vieram os imigrantes e os assentamentos aqui no Brasil, destacando Santa Cruz, Venâncio Aires, São Leopoldo, Novo Hamburgo e outros, ela conclui que “as colônias [a ocupação no meio rural] alemãs do RS foram planejadas por técnicos de origem lusa, baseadas na concepção da cultura lusitana. No último parágrafo arremata: “a forma das cidades [os assentamentos urbanos] de imigração alemã no RS herdaram poucas influências(ou nenhuma) das cidades alemãs de onde vieram os imigrantes.”
*****O livro Catedral São João Batista (Edunisc, 2006) do professor e arquiteto Ronaldo Wink é um importante documento, com vários dados fundamentais para se perceber a importância, a magnitude, o simbolismo do templo católico máximo santa-cruzense. E, para além de subjetivismos que não caberiam num trabalho estritamente acadêmico e a continuidade de um enfoque historiográfico centrado num grupo étnico – os teuto-descendentes –, emergem, direta e indiretamente, informações que podem gerar, paradoxalmente, uma abertura à visão “germanófila” (apologética e vitimista) da história de Santa Cruz do Sul. Após 76 anos de uso (os dados já foram mencionados no texto acima), a destruição da antiga matriz, erguida praticamente junto com o núcleo planejado e executado pelo governo provincial (urbanificando o que era um povoado – o Faxinal do João Faria) e várias vezes ampliado, carregando em suas estruturas a estética, o trabalho e a devoção de inúmeras personalidades e grupos étnicos dos primórdios da região de Santa Cruz – lusos, negros (os trabalhadores por excelência na época, que até os tijolos fizeram – vários, provavelmente, na base da atual catedral), teutos (já chegados na localidade), mestiços (índios arranchados pela região e no aldeamento de São Nicolau, em Rio Pardo) e até ingleses, como o empreiteiro Guilherme Lewis e seu filho pintor (responsável pelas pinturas internas do templo original), além de sua esposa, Dona Carlota, notória liderança comunitária (como ressalta o médico e estudioso viajante Robert Avé-Lallemant) –, essa sólida construção, pronta para durar séculos, é simplesmente eliminada. A prova da sua fortaleza está nos trabalhos finais de demolição, que consumiram oito meses e demandaram técnicas especiais para o seu solapamento completo (ver páginas 85 e 86) – sendo que havia outras alternativas à eliminação da entroncada e enraizada edificação. Mas apesar dos esforços em contrário de pessoas e manifestações de parcelas da comunidade (ver a ação do Pe. Alfredo Blay), a igreja, quase octogenária, esfumaçou-se para a “total glória” do projeto original do alemão/austríaco Simon Gramlich, modificado pelos engenheiros Heinerich Schütz e Ernest Matheiz. Um ato que hoje seria considerado bárbaro, irresponsável, escandaloso e até criminoso. Mesmo tendo se passado 58 anos (em 2008) do final da destruição do antigo templo, tal fato deveria nos constranger ou ao menos ser motivo de reflexão – enquanto munícipes santa-cruzenses. Afinal, que tipo de valorização do passado, dos antepassados, dos documentos e outros elementos históricos nós em verdade queríamos e queremos preservar e difundir? Em que medida e qual significado e dimensão político-ideológico se insere a substituição da antiga matriz “brasileira” pela catedral “alemã”? São hipóteses e questionamentos que ainda precisam de aprofundamentos.
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