Ao longo dos últimos seis anos, desde a formação do Coletivo de Estudos Étnicos e Culturais de Santa Cruz do Sul (Cedecs), passando pelo Grupo de Trabalho pela Promoção da Comunidade Negra em Santa Cruz do Sul (GT-Afro), até a culminância no Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (Compir), o envolvimento com a “questão étnica” na região do Vale do Rio Pardo, mas, em especial, no município de Santa Cruz do Sul, gerou em mim uma série de reflexões e a produção de mais de uma centena de textos sobre o assunto. Muitos foram publicados em jornais, como artigos opinativos e mini-ensaios. Não havia, propriamente, a preocupação em referir-me a uma outra questão fundamental: o gênero, a dominação masculina, a submissão das mulheres, ou melhor, o machismo onipresente, que tanto sofrimento já gerou neste planeta. Mas como tenho uma vontade de envolver-me com a multiplicidade de visões e sentimentos da humanidade, adotei para mim mesmo uma diretriz: nunca deixar de ler a literatura e outros textos produzidos por mulheres. No caso das questões étnicas santa-cruzenses, me senti muito feliz em ver o assunto abordado de forma esplêndida por duas escritoras já reconhecidas e, justamente, nascidas na cidade: Lya Luft e Valesca de Assis. Em suas obras, pode-se dizer, o universo da mulher é, naturalmente, algo inerente, mas salta também uma surpreendente perspectiva sobre o conflito étnico e a história municipal – surpreendente porque desvinculados da perspectiva monoétnica e exclusora das versões apologéticas que ainda vigoram no popularizado imaginário local.
Como forma de colaborar, estou apresentando os três pequenos artigos elaborados a partir da obra de Lya e Valesca (Desmistificando a história de Santa Cruz; A asa esquerda e O mar de dentro santacruzense), mais três outros comentários que se relacionam com história e etnicidade na região de assentamentos de povos germânicos, a partir de pontos de vista de mulheres (Uma madame na selva) e onde tentei pensar na construção da mulher em Santa Cruz (Colonos e colonas de todas as etnias, parabéns a vocês! e Legítima alemã? Como assim? – um produzido em alusão ao “Dia do Colono” e o último feito a partir de uma reportagem saída na imprensa).
Sei que minhas contribuições estão muito aquém dos artigos das demais pessoas que estão neste livro. Mas, sem demasiada arrogância intelectual e sem ilusões sobre equívocos que costumo cometer, seguem como uma possibilidade para, quem sabe, de derivação para trabalhos de mais fôlego e contundência – numa cidade que, muitas vezes, somado à “germanofilia”, está o “machocentrismo”. Dois tipos de limitação ideológica que, lamentavelmente, estreitam nossos horizontes. Ao menos na minha opinião!
Desmistificando a história de Santa Cruz
A literatura muitas vezes pode ampliar a nossa visão sobre o mundo e, mesmo, sobre a história de Santa Cruz do Sul. É o caso, entre outras, da obra A valsa da Medusa (Editora Movimento, 1989), de Valesca de Assis, outra escritora, que, junto com Lya Luft, montam, a partir de suas vivências e conhecimentos, narrativas de excelente densidade social e psicológica. Valesca, através da ficção, baseada em situações reais ou factíveis, e também vários personagens verídicos, amplia o nosso olhar, penetrando na diversidade de indivíduos, grupos e acontecimentos que foram moldando a comunidade santa-cruzense. Saímos de estereótipos, unilateralismos, da epopéia para a crueza própria do ser humano.
Um pequeno trecho do romance, que transcorre em meados do século 19 – ainda, portanto, no início da introdução de imigrantes germânicos (entre outros) na região –, nos coloca frente a inter-relações étnicas ainda pouquíssimo estudadas aqui no Vale do Rio Pardo, especialmente em Santa Cruz do Sul, ou seja, os índios (e/ou descendentes indígenas) e os imigrantes germânicos, além do conflito de identidades regionais trazidas de uma Alemanha ainda em formação.
Pois bem, o colono de sobrenome Schneider comenta com o professor Waldvogel em meio aos calores de uma queimada para a abertura de terreno à lavoura: “Parece mentira que esses índios tenham alguma coisa a nos ensinar. É como se nós, renanos, tivéssemos algo a aprender com a gente atrasada da Pomerânia; como se o sacristão pudesse dizer missa ao vigário! – Peter Schneider cuspiu para o lado e olhou de viés para Inácio Correia (o personagem indígena), seu empregado. – tenho de me cuidar – segredou – logo essa bugrada ladina estará entendendo alemão.” A narradora complementa, no parágrafo a seguir, que “Todo aquele discurso nasceu da curiosidade de Tristan Waldvogel em saber detalhes sobre esse modo peculiar de dobrar a natureza: a coivara, coisa de índio. Nada obteve, senão a indignação de Schneider diante da superioridade dos nativos, ao menos no domínio de uma técnica.”
O preconceito é explicitado muitas vezes ao longo do livro. Outro colono teuto, “Herr” Eick, diz ao já citado Waldvogel: “Sabe, professor, eu não consigo aceitar os brasileiros como gente igual a nós. São burros, desdentados, feios; sinto repulsa em vê-los, em ter de apertar sua mão. Não sei como D. Pedro pode governar gente tão irrisória: é como reinar sobre um bando de macacos; não há a menor ressonância, o menor respeito.”
Nem só o elemento indígena nos é apresentado em A valsa da Medusa. Além da real e importante figura do imigrante norte-americano Guilherme Lewis, proprietário de escravos negros que trabalhavam em uma olaria nas imediações do então Faxinal do João Faria, hoje cidade de Santa Cruz do Sul, Valesca introduz em seu escrito a presença de brasileiros de outras províncias do país – que, de fato, estava ocorrendo conjuntamente à instalação das levas emigradas da Europa. Ela escreve assim: “Ruidosa como sempre, foi à chegada (em uma reunião com o diretor da Colônia de Santa Cruz, João Buff) dos baianos, liderados por José Gonçalves, na verdade o único baiano do grupo formado por ele, um paulista e dois paraenses. Os quatro haviam lutado contra Rosas (ditador argentino, morto em 1877), encantaram-se com o sul e decidiram ficar por aqui, onde casaram – a contra-gosto de algumas famílias – com moças alemãs.” Estamos diante da miscigenação e, de novo, de relações não-pacíficas entre grupos e identidades étnicas.
E é assim, através de contrapontos explicitados em trabalhos como A valsa da Medusa, que vamos formulando uma história de Santa Cruz do Sul e região menos mistificada, mais humanizada e etnicamente inclusiva.
Conflito étnico na Asa Esquerda
Uma das facetas que mais achei interessante no profundo romance A asa esquerda do anjo, da escritora santa-cruzense Lia Luft, é a exposição do conflito étnico que vivencia a protagonista da história, chamada por uns – “à maneira alemã” – de Guízela, e por outros de Gisséla – “em brasileiro”. O ambiente da cidade parece inspirado na Santa Cruz do Sul em torno dos anos de 1950.
São várias as passagens onde aparecem explicitamente litígios pessoais e sociais de fundo racial. Em certa altura da leitura, a personagem, que é neta de uma austera e conservadora avó de origem alemã, narra uma experiência de infância passada na escola, quando se depara com colegas que gritam em desprezo e ofensa a ela: “Alemão batata come queijo com barata”. Atordoada, Gisela retruca que em sua casa ninguém come tal coisa. As colegas, em clima de “lusos-descendentes versus germânicos”, não desistem: “Come sim, meu pai disse que vocês comem coisas esquisitas”, complementando que os alemães “vivem no Brasil e dizem que a Alemanha é melhor. E querem ser mais que a gente”. Vendo seus protestos e considerações não surtirem efeito apaziguador, Gisela, magoada, acaba por “devolver na mesma moeda”, e então insulta às “brasileiras” com um argumento derradeiro: “E vocês que têm sangue negro!”
Coisa terrível. A afro-descendência é usada como o máximo dos rebaixamentos da pessoa. Percebemos, assim, que, em meio a uma escola – conforme se pode concluir – freqüentada apenas pela elite branca da cidade, a hostilidade étnica mantêm-se, é grande e reafirma estereótipos, como a “superioridade ariana” dos descendentes de imigrantes alemães no Brasil em contraposição à “contaminação genética” que os de origem lusa teriam; a “não-brasilidade” dos teuto-descendentes e o conseqüente “perigo alemão” de que nos fala René Gertz. Sobretudo, no conjunto do conflito dessas meninas com raízes européias retratadas no romance, depreende-se a comum ojeriza dos brancos aos negros, enfim, o racismo explícito no seio da comunidade.
Lia Luft tem dito em suas entrevistas à imprensa que, de fato, vivenciou em seu tempo de criança e adolescência o peso do preconceito racial/cultural e os dramas humanos por ele produzidos. Assim, a A asa esquerda do anjo, mesmo que ficção, faz uma denúncia à intolerância, donde percebe-se o rompimento da autora com ilusões, mitos e tradições “puristas”, que, ao invés de incluir, excluem pessoas, com um saldo enorme e absurdo de sofrimentos desnecessários.
A África ancestral no mar de dentro santa-cruzense
No livro Mar de dentro, de Lya Luft (editora Arx, 2002), li um episódio vivido pela autora na sua infância aqui em Santa Cruz do Sul, lá pelos meados dos anos de 1940, envolvendo uma benzedeira afro-descendente chamada Dona Negrinha, à qual até mesmo a elite da cidade recorria quando, nas palavras da escritora, “as mulheres da casa não acreditavam mais na medicina”. Além de aspectos que remetem à busca de “soluções mágicas” tidas como impróprias a “pessoas urbanizadas” – e por isso mesmo, penso eu, escamoteadas nos “registros históricos oficiais” –, há, na narrativa da autora, elementos interessantíssimos para pensar a inserção sociocultural da população negra na "toda germânica" Santa Cruz – ainda mais explicitamente do que pode ser vislumbrado no seu romance A asa esquerda do anjo. (Observe-se que Mar de dentro é um livro de memórias; uma autobiografia; diferente de uma obra de ficção. Embora, em minha concepção, o “filtro e a verve literárias” não retirem o valor de um escrito como elemento para compreensão da sociedade. Muitas vezes, pelo contrário: a sensibilidade artística pode ser um aliado no desvelamento de meandros das relações humanas grupais. Como se refere outra escritora magistral, Lygia Fagundes Telles, justamente a respeito da sua colega Lya Luft: “conseguiu ela criar uma obra que é documento social e arte”.)
A abrangência dos serviços da Dona Negrinha, com certeza, se estendiam a diversas famílias santa-cruzenses de todas as classes. Os "bruxedos" da velha senhora negra, moradora em um casa, “quase um barraco”, como lembra a autora nascida em Santa Cruz do Sul em 15 de setembro de 1938, deviam ser afamados. Lya diz que, ao final do ritual, se sentiu “renascida, protegida, para sempre salva”. “As roupas que lhe levavam retornavam com o odor de ervas e fumaça, mas docilmente eu deixava que me vestissem com elas, certa de que já estava curada”, complementa, numa outra recordação da meninice da hoje madura e prestigiada cronista da revista Veja.
Esta amorosa consideração em Mar de dentro, que começa lá na página 76, são indicações de que a presença e influência de personalidades e, mais amplamente, da cultura negra em Santa Cruz do Sul não foram, nem são desprezíveis como muitas vezes se tenta fazer entender. Os saberes curativos oriundos de um África ancestral, passados de geração em geração desde a chegada dos primeiros trabalhadores negros no Brasil, dominado por humildes xamãs – caso desta Dona Negrinha lembrada por Lya –, estavam, já antes dos conturbados tempos da 2ª Guerra Mundial, consolidados na vida social de uma crescente cidade interiorana de forte presença alemã, fundada a partir do povoado denominado Faxinal do João de Faria – aliás, uma referência (pouco considerada) ao sesmeiro em cujas terras "numerosos escravos" labutavam, conforme registra José Bitencourt de Menezes, em seu basilar Município de Santa Cruz, brochura editada em 1914.
Os vários templos e milhares de pessoas adeptas, que têm – mesmo que esporadicamente – nas cerimônias, rituais e procedimentos religiosos de matriz africana em Santa Cruz do Sul uma fonte de ligação com os aspectos transcendentes e busca de alívio a agruras humanas, afirmam que a pluralidade cultural e a influência afro são fatos incontestáveis. A identidade santa-cruzense, para além de estereótipos, é, desde os primórdios da comunidade, multifacetada, híbrida, produto de diversas contribuições, numa conjunção enorme de fatores e gentes. Isso deveria impedir simplificações e, como aponta o professor Mário Maestri, mitificações – mesmo que para “efeitos turísticos” – que levam a menosprezar determinados grupos étnicos na hora de contar a história do município.
Uma madame na selva
Há livros surpreendentes, não é mesmo? Sem se esperar muito, ou quase nada, acabam revelando pequenos tesouros. No caso, sobre a história e a sociedade da época das imigrações no Rio Grande do Sul, e até mesmo aqui da nossa região do Vale do Rio Pardo e Central do Estado, nos meados do século XIX. Estou falando das memórias de Madame van Langendonck, traduzida do francês como Uma colônia no Brasil.
Marie Barbe Antoinette Rutgeerts van Langendock, seu nome completo, veio da Bélgica em 1857, já com seus quase 60 anos. Após uma estada em Porto Alegre (onde voltará mais vezes), sobe o Rio Jacuí num lanchão, instalando-se primeiro em Santa Maria da Soledade, numa colônia nas terras concedidas a um tal Conde de Montravel.
Letrada, poetisa, traz neste seu escrito saboroso o “tom mais íntimo” reputado às escritoras mulheres, como é dito na resenha que consta nas orelhas da obra publicada em 2002 pela Edunisc e editora Mulheres. Poderia dizer que também há nas suas palavras uma clara auto-submissão patriarcal ao governo imperial brasileiro e uma dedicação aos filhos, a ponto da bajulante madame não se constranger em reivindicar favores aos seus rebentos por parte do “maior soberano que o céu jamais deu à terra”, se referindo a D. Pedro II.
Há várias passagens interessantíssimas que, como diz Augusto Meyer na introdução à narrativa – publicada originalmente em 1862 –, “em duas ou três penadas traçam todo um quadrinho social em flagrante”. Também revela, quase subitamente, uma visão nem sempre edificante para muitos grupos e personalidades, enquanto acaba ressaltando papéis costumeiramente subalternizados, quando não invisibilizados dentro da historiografia apologética (termo que pego emprestado do doutor em História, Prof. Mário Maestri) centrada nos imigrantes europeus.
Assim, Langendonck fala de negros, índios, mestiços que, mesmo em meio aos preconceitos variados da autora – por si só reveladores do pensamento então em vigor, devendo ser entendidos no contexto sociocultural da época – são indicadores da interação profunda com os grupos trazidos e vindos da Europa e que vão sendo assentados na região a partir de 1849, como aconteceu em Santa Cruz do Sul.
Há as tragédias da viagem em embarcações lotadas e pouco salubres que vêm ao Brasil, como quando uma jovem mãe é forçada a ceder o seu bebê de três meses recém falecido, para ser jogado ao mar num pacote, que, para aumentar o sofrimento de todos a bordo, permanece boiando alguns instantes terríveis, para depois ser arrastado pelas ondas do mar, onde ficará sepultado nas profundezas, como outras crianças que se seguirão ao longo dos meses de travessia do oceano.
Nestes navios, não viajavam apenas virtuosos trabalhadores rurais. Havia, como diz a belga, exemplificando com famílias suas conterrâneas, recrutadas na “populaça”, “os piores dessa escória”, saídos de “prisões e depósitos de mendigos”, “germes de todos os vícios da humanidade”, “amostras de toda a infâmia do velho mundo”. “Entre os colonos vindos da Alemanha, estavam ladrões, incendiários, assassinos. Quase todos eram indivíduos que haviam passado de quatro a doze anos na cadeia e com os quais tínhamos medo de nos encontrar nas florestas” (página 57), após o desembarque e início dos trabalhos na colônia, ressaltando que, da terra de Goethe, não vinham “apenas bandidos”, “muitos alemães são infatigáveis trabalhadores” – mas já colocando em definitivo, no painel historiográfico da imigração, uma dimensão de personalidades que não servem para ilibados heróis.
Perde-se em sentimentalismos passadistas glorificadores, mas ganha-se em fidedignidade e compreensão da complexidade social e humana envolvidas na formação das comunidades das zonas de (ou melhor, com) colonização européia. Eis um dos tantos lucros da leitura das aventuras e desventuras da Madame van Langendonck, morta em 1875 na região de Pelotas, após andanças pelo Rio de Janeiro, pela Europa (numa breve volta) e, novamente, o Brasil, a São Leopoldo já marcada pelos teuto-descendentes, e outras localidades do Estado gaúcho.
Colonos e colonas de todas as etnias, parabéns a vocês!
Já comentei em outras oportunidades sobre o 25 de julho, "Dia do Colono", que, na verdade, em minha opinião, pode ser dito, com uma certa dose de picardia e constatação prática, o "Dia do Alemão", a data máxima, com direito a feriado, em municípios como Santa Cruz do Sul, suplantando, inclusive, o 28 de setembro, data da emancipação política santa-cruzense. Em Venâncio Aires, por exemplo, a “coisa” não chegou a este ponto, mantendo-se o 11 de maio como a comemoração “de fechar o comércio”.
Mas nem vou "implicar" muito com isso. Vai só uma questão: No tal "dia do colono", quem se lembra, por exemplo, que os verdadeiros primeiros agricultores da região, os primeiros colonizadores (evidente que numa outra concepção de ocupação territorial), plantadores e beneficiadores do fumo (e também do milho, mandioca, batata-doce, feijão, vários tipos de abóboras, amendoim e outros produtos por eles desenvolvidos, e que até hoje sustentam os trabalhadores rurais e empresas beneficiadoras), foram, conforme atestam os estudos em vários sítios arqueológicos, os índios, com destaque aos Guarani (tradição tupiguarani, os autóctones típicos da floresta subtropical, conforme nos apresenta o Prof. Dr. Pedro Mentz Ribeiro), que ocuparam o território do Vale do Rio Pardo mais ou menos pela época da "descoberta" do Brasil?
Pois é. Ninguém faz sequer uma leve referência a isso. Todas as homenagens são dirigidas ao imigrante "alemão" (ou, no "máximo", "italiano") e seus descendentes, os únicos que parecem merecer do título de "agricultores" – quando, também é sabido, vários imigrantes tinham pouco ou nenhuma experiência com o cultivo da terra, mesmo assim recebendo subsídios governamentais nas colônias oficiais, caso de Santa Cruz e Monte Alverne. Frise-se que, na época, o dinheiro do Estado vinha basicamente do trabalho escravo, que fazia literalmente tudo, enquanto a elite lusa "pura", “branca”, mandava e desmandava encastelada na totalitária administração pública. Ou seja, em síntese: o esforço brutal dos negros escravizados financiou a ascensão social do emigrante europeu no século XIX!
E já que mencionei afros, no "dia do colono" também se esquece do agricultor negro, que, de novo, em Santa Cruz, já trabalhava pelo menos desde o século XVIII nas propriedades rurais dos sesmeiros, como a de João de Faria Rosa, local onde hoje se assenta a cidade, bairros e partes do interior santa-cruzense. E sem contar os vários quilombos em meio às matas, nos grotões do ainda ermo, na época, Vale do Rio Pardo, onde os "fugidos" subsistiam pelo trabalho agrícola. Pergunto: Quem viu pelo menos uma pequena foto de canto com um afro-descendente (podia ser, mesmo, um “agregado", este pseudo-proletário, a um passo da servidão...) capinando ou arando o solo na profusão de anúncios em homenagem ao agricultor nas edições especiais dos jornais da nossa região?
Também poderíamos nos alongar no assunto, perguntando: Onde estão as mulheres nestes “tributos” na imprensa e outros meios? Nem mesmo as “Fridas” costumam aparecer – quando se sabe que o trabalho delas foi imprescindível e até, quase sempre, mais estafante e fundamental do que o dos homens. No monumento ao colono (e começa por aí: “o”, e não “a”; “colono”, e não “colona”), no início da rua Galvão Costa, centro de Santa Cruz do Sul, não há – seja na estátua em bronze ou no painel de ladrilhos – figura alguma de mulher! Onipresente, está o homem, que até parece parir-se a si mesmo.
Bem, essas coisas não são ditas para menosprezar o colono imigrante (muito menos a colona) que veio da Europa. Essas coisas são ditas no intuito de colaborar numa reflexão que amplifique a consideração do importante trabalho que os trabalhadores e trabalhadoras rurais desempenharam e desempenham na região, incorporando às homenagens (“home”-nagens!) outros grupos étnicos historicamente discriminados – além, está evidente, das mulheres, que de “sexo frágil” não têm nada (a não ser como ideologia para manter-se submissões). Construiremos assim, acredito eu, uma sociedade de fato mais igualitária, menos discriminatória, mais justa com todos e todas.
Legítima alemã? Como assim?
Em 2004, caiu-me em mãos uma reportagem produzida por uma jornalista, ex-soberana da Oktoberfest santa-cruzenses, publicada no caderno de cultura de uma jornal local. Foi grande a minha expectativa, dado o meu interesse pelo assunto sob diversos ângulos! Mas a minha atenção à página prendeu-se nem tanto pela grande foto de uma bela moça de cabelos loiros e olhos esverdeados, mas pelo título: “A legítima mulher alemã”, com a palavra “alemã” bem destacada. Perguntei-me, então: Ora, pelo que entendo, uma mulher alemã legítima, ou deve ter nascido na Alemanha, ou ter sido, ao menos, naturalizada nesse país que fica a milhas e milhas de distância do Brasil! E parecia não ser o caso.
A julgar pelo “perfil” desta teuto-descendente – pelo que indica o sobrenome e seus traços físicos (o que não é garantia alguma de uma “pureza germânica" da menina) –, nascida há 18 anos na Linha João Alves (topônimo que se refere a um antigo proprietário de terras na localidade - Alves, vejam só!), ela se parece, ao contrário de uma “legítima alemã”, uma típica jovem brasileira dos dias de hoje.
Daniele Aline Hackenhaar destaca, na entrevista, como cantora preferida a baiana Ivete Sangalo, baluarte da “axé-music”; tem como prato predileto a italianíssima lasanha; como bebida alcoólica, o escocês whisky; sua viagem marcante foi ao parque temático do “caubói nacional”, Beto Carrero; seu livro de cabeceira é O Alquimista, de outro consagrado baiano, Paulo Coelho; a atriz é a carioca Fernanda Montenegro, entre outras referências que estão longe de ser de alguém com algum traço cultural muito diferenciado de uma comum adolescente que nasceu e vive no Brasil contemporâneo.
Nem falar uma língua estrangeira, como é dito de Daniele, pode ser alegado como algo distintivo. Não é porque domino o idioma britânico, tenho um antepassado vindo da Inglaterra, e admiro o charme de Londres, que posso me ter como um “legítimo inglês”.
Igualmente interessante – além do texto em si –, com poucas exceções, é que a matéria não gerou espanto maior. Foi recebida com algo perfeitamente “natural”, ou seja, tratar-se uma moça brasileira como uma “legítima alemã” não foi visto como, no mínimo, uma falta de precisão jornalística. Duvido que isso acontecesse no caso, por exemplo, de uma matéria sobre a “mais bela negra” santa-cruzense, onde aparecesse com o título “A legítima africana” ou, mais esdrúxulo ainda, “A legítima mulher angolana”, para se referir à região do continente africano de onde vieram uma boa parte dos antepassados dos negros e negras do nosso país.
Enfim, somos todos/as brasileiros/as, da nação brasileira, com nossas origens diversas e já por muito étnica e geneticamente “misturadas”, híbridas – como tão bem demonstra as preferências de Daniele. A afirmação de uma raiz cultural não precisa chegar a ponto de levar a confundir nacionalidade com descendência, entre outros "equívocos" que muitas vezes só servem para manter hierarquias mal disfarçadas.
Iuri J. Azeredo (05/04/2007 *Data do envio às editoras do Conselho da Mulher de SCS.)
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